Roberto Gerin

Resenha Uma Linda Mulher, por Roberto Gerin

O PODEROSO PODER DO AMOR

Inesquecíveis momentos de amor todo mundo sonha em viver. Mas se a realidade não nos oferece de pronto estes desejados momentos, vamos atrás de experimentar amores alheios. Afinal, não custa sonhar através dos outros, principalmente quando estes outros são personagens de ficção. Neste sentido, os filmes românticos podem ser uma boa pedida. Afinal, eles existem para isso. UMA LINDA MULHER (119’), direção de Gary Marshall, EUA (1990), é uma dessas belas oportunidades de tirarmos um pouco os pés do chão e viajarmos no mundo das fantasias.

E Uma Linda Mulher cumpre à risca a missão de nos fazer sonhar. Não à toa, é reconhecido como um dos filmes românticos mais completos que o cinema já produziu. Exagero? Se analisarmos a origem do filme, cuja trama inicial pretendia mostrar a dura vida das prostitutas em Los Angeles, uma proposta perigosa do ponto de vista comercial, o que levou Hollywood a mudar os rumos do roteiro, e mais, se analisarmos o elenco principal, Julia Roberts e Richard Gere, a trilha sonora, os diálogos pontuais e ágeis, o roteiro enxuto e competente, o glamour, e o mais importante, o desfecho genuinamente romântico, vamos entender por que os entusiasmos em torno do filme fazem todo sentido. Sim. O filme é quase perfeito. O filme e Julia Roberts. Ah! E Richard Gere.

Os filmes românticos têm que nos oferecer a ideia de que podemos ser protagonistas de um grande amor.

O romantismo sempre é bem-vindo — em qualquer lugar e hora. Mas é bom lembrar. Por estarmos vivendo uma contemporaneidade bastante conturbada, talvez seja difícil imaginar algum estúdio, hoje em dia, querendo investir fortunas nesse tipo de gênero. Não nos esqueçamos que o sonho precisa de espaço. Ele tem que caber numa possibilidade. Por mais que acreditemos que contos de fadas são ilusões fabricadas, temos que nos apoiar na crença do sonho possível. É essa possibilidade que os filmes românticos precisam nos oferecer. A ideia de que também nós podemos ser protagonistas de um grande amor. Portanto, com a falta de filmes românticos recém-lançados, se quisermos sonhar, a saída é resgatar os clássicos.

Como qualquer filme romântico, Uma linda Mulher só consegue ir até o primeiro grande beijo.

Eis então o bom e velho roteiro: uma mulher linda, colocada socialmente em uma situação de inferioridade moral, cultural ou financeira, vê-se, pelas circunstâncias fortuitas da vida, sendo salva por um homem rico, de preferência bonito, que a princípio só tem a intenção de salvá-la, quando, à revelia, é violentamente sugado pela paixão. Pronto. O que era para ser o desfile de cenas de puro altruísmo e pequenas doses de heroísmo, transforma-se numa grande ação humana. Afinal, amar é uma das experiências mais misteriosas e fantásticas que o ser humano pode experimentar.

Evidente, o amor, quando submetido à convivência cotidiana, nos coloca o desafio de transformar impulsos aleatórios em energia produtiva. O que se quer dizer com isso? Que precisamos renovar dia a dia nossos esforços emocionais para sustentarmos uma feliz relação a dois. E sabemos que sustentar uma relação olhos nos olhos não é nada fácil. Afinal, depois dos primeiros encantos, vem o choque de realidade. Isso explica por que os filmes românticos sempre terminam um pouco antes do cotidiano. Por que vão só até o primeiro grande beijo.

Nosso herói vai passar por uma profunda transformação interior, que irá prepará-lo para o megabeijo final.

Edward Lewis (Richard Gere) é um belo e poderoso empresário que, lá pelas tantas, foge de uma festa chata e sai pelas ruas dirigindo o supercarro, — uma lótus —, do seu advogado Barney Thompson (Héctor Elizondo). Edward alimenta a singela intenção de retornar ao hotel, na sua megassuíte de cobertura, e colocar os pés para cima, com o simples desejo de descansar de um extenuante dia de trabalho. Só que o megaempresário não sabe dirigir um megacarro automático. Esta é a isca narrativa para que nosso herói romântico vá parar nos bulevares hollywoodianos, lá onde as prostitutas oferecem seus serviços. No entanto, Edward não está à procura dos tais serviços. Ele só quer que alguém dirija o carro automático e o leve para o hotel.

Pronto. Está lançado o tapete vermelho para que uma linda mulher, Vivian Ward (Júlia Roberts), apareça na calçada da vida para salvar aquele empresário tão inepto. Ela senta ao volante e dispara pelas ruas de Hollywood! E assim se inicia uma grande e bem contada história de amor. Só que antes do amor, haverá um desfile de preconceitos e arrogâncias, e, como não poderia deixar de ser, o protagonista, nosso herói, vai passar por uma profunda transformação interior, que irá prepará-lo para o megabeijo final.

Precisamos voltar no tempo para entender de onde surgiu Uma Linda Mulher.

O roteiro de Uma Linda Mulher não é novo. E muito menos original. Por isso, vale a pena desenhar, mesmo que com imprecisões, a sua árvore genealógica. Para tanto, vamos revisitar rapidamente alguns livros e filmes clássicos, de onde poderemos pinçar personagens equivalentes, que já existiram na mente criativa de outros artistas.

O livro Orgulho e Preconceito, depois transformado em filme, é o primeiro que nos vem à memória. A escritora Jane Austen, evidentemente, não teve a intenção de construir um conto de fadas à la Disney. A narrativa, no entanto, leva para esse rumo, pois, vamos ver o mega-aristocrata Mister Darcy se casando com a pobretona Elizabeth Bennet. O filme A Noviça Rebelde é outro exemplo de como contrastes sociais, econômicos e culturais podem ser anulados por um grande amor. O livro e filme O Grande Gatsby é outro conto de fadas, mas um tanto às avessas, já que leva ao trágico. E assim podemos ir caminhando por uma bela linhagem de contos, romances e óperas — La Traviata, por exemplo —, até chegarmos ao maior deles, o conto que impregna toda a cultura ocidental naquilo que temos de mais precioso: a possibilidade, mesmo que ínfima, de escaparmos ao nosso mísero destino. Falamos da maltratada e resiliente órfã, e depois princesa, Cinderela.

Uma Linda Mulher tem um pedigree de dar inveja a muitas produções cinematográficas.

Mas vamos à principal influência de onde o filme Uma Linda Mulher tira boa parte da sua seiva narrativa. Estamos falando do belo musical My Fair Lady, lançado no cinema em 1964. É uma história de amor que estranhamente não se completa. A culpa é de Mr. Higgins, um solteirão convicto e professor de fonética que faz uma desafiadora aposta com seu amigo Pickering. O rico Higgins promete tirar das ruas londrinas a inculta e miserável florista Eliza Doolittle e transformá-la, em seis meses, numa princesa. Enquanto Eliza, através de Higgins, de fato se transforma, o professor continua no mesmo lugar. Um arrematado egoísta que assumiu idealizar a mãe como a mulher perfeita. Higgins precisava se transformar para levar Eliza ao altar e assim completar o par romântico. Só que a obsessão pela mãe o condena à solteirice.

Aí é que entra o filme Uma linda Mulher. Ele vem corrigir esse grave defeito. Diferente de seu congênere Higgins, Edward Lewis, o empresário tímido e inseguro no amor, se deixa passar pela necessária transformação, para assim cair romanticamente nos braços da outrora prostituta Vivian Ward.

É bom lembrar ao espectador que a verdadeira origem de Uma Linda Mulher, e também do musical My Fair Lady, vem um pouco antes no tempo, em 1913, quando o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw lançou uma de suas obras primas, Pigmalião. Que, por sua vez, é inspirado em Metamorfoses, de Ovídio… Como se vê, a cultura é uma grande massa que se fermenta a cada vez que surge um grande artista, o que nos leva a admitir que nessa vida nada se inventa, tudo se fermenta. Sempre na busca, claro, de um novo sabor.

Em nossa essência, somos seres utópicos.

Em suma. Pena que o filme Uma Linda Mulher não teve continuação. Primeiro, para “continuarmos” a admirar a estonteante beleza de Júlia Roberts e, por tabela, a beleza e o charme, à la Clark Gable, de Richard Gere. Segundo, para nos certificarmos de que o conto de fadas vai mesmo continuar sendo um conto de fadas nos próximos anos. Apesar de difícil, sabemos, não é impossível. Mas, divagações à parte, o que interessa mesmo para um conto de fadas é chegar até o beijo. A partir daí, caberá a nós idealizarmos nosso próprio beijo sobre o qual se fundará nosso projeto de vida afetiva. Sim. Não há nada de errado em sonharmos. Em nossa essência, somos seres utópicos. Precisamos idealizar, imaginar, acreditar. Afinal, precisamos de certa utopia para nos mantermos vivos e podermos seguir adiante com nossa grande missão humana na terra — que é amar.

 

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