Roberto Gerin

Resenha Tempos Modernos, por Roberto Gerin

A DESPEDIDA DO VAGABUNDO

Quando Charlie Chaplin começou a produzir TEMPOS MODERNOS (83’), EUA (1936), já se pressentia que este seria o último filme estrelado pelo adorável Vagabundo (The Tramp). Falamos de uma época em que o cinema sonoro já era unanimidade. Época em que milhares de filmes despejavam seus intermináveis diálogos nas telas dos cinemas e os musicais dominavam a cena com suas produções suntuosas. Chaplin entendeu que era chegada a hora de calar para sempre o seu Carlitos. É com este olhar de despedida que devemos assistir a Tempos Modernos.

Sem dúvida, uma decisão difícil para Chaplin. Como desfazer de sua genial criação, a base do seu sucesso como artista? Seria colocar um ponto final na figura mais humana e talvez mais completa que jamais se viu como arte cinematográfica, cuja longa trajetória tornara-se a síntese da história das primeiras décadas do cinema.

Em Chaplin, Tempos Modernos simboliza o resumo mais que perfeito de sua genialidade.

Portanto, eis o principal cartão de visitas de Tempos Modernos: ter sido o último filme realmente mudo do roteirista e diretor Charlie Chaplin. A consciência de que o tempo chegara ao fim para seu Vagabundo é tão perceptível que Chaplin não poupou cuidados artísticos e estéticos, e nem pantomímicos, para elevar Tempos Modernos ao nível máximo de obra prima. Em Chaplin, Tempos Modernos simboliza o resumo mais que perfeito de sua genialidade.

O filme inicia com uma imagem inusitada, quando Chaplin, numa sequência de segundos, compara as ovelhas em movimento com o bando de operários encarneirados entrando numa fábrica. Entre as ovelhas — atenção! —, uma é negra. É sinal de que o filme cumprirá à risca o que é declarado logo em seu início — “Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade na busca pela felicidade.”.

A princípio, o espectador fica com a impressão de que o operário Carlitos entraria na fábrica (mais um carneirinho) e lá dentro ficaria, até o fim do filme. Seria possível a narrativa se desenrolar inteiramente dentro de um ambiente de trabalho? Ainda mais em se tratando do Vagabundo, a personagem das ruas? Não sofreria o filme um esgotamento precoce?

O Vagabundo então se dá conta de que ele terá que trabalhar se quiser constituir um lar.

Felizmente, depois de dezessete minutos, numa belíssima sequência em que Chaplin nos mostra como a indústria desfigura o ser humano, vemos nosso herói sendo carregado em uma ambulância, acometido por um estresse avassalador e genialmente cômico. A mecanização, com seus absurdos gestos repetitivos, enlouquece nosso herói. Mas, para que o filme continue, o Vagabundo logo sai do hospital e a narrativa ganha as ruas, quando então vamos ficar apenas com a última parte da declaração acima — a de que a humanidade não desistirá nunca da sua busca pela felicidade.

E como será essa busca? Para Chaplin, a resposta é simples. Por meio do afeto. Pois o Vagabundo se apaixona. Por uma órfã andarilha. Como ele. Ela se chama Ellen Peterson, encarnada por Paulette Goddard. O Vagabundo então se dá conta, assustado, de que ele terá que trabalhar se quiser constituir um lar. E ele quer um lar. É o seu sonho. É o prenúncio do seu fim, por isso ele sabe que terá que buscar um lugar onde se recolher. A paixão o tirará das ruas.

Provavelmente, em nenhum dos filmes anteriores de Chaplin, um papel feminino tenha ocupado tanto espaço como protagonista. A andarilha movimenta os passos do Vagabundo. Motivado pela paixão, começa para ele o périplo em busca de um emprego (felicidade) numa Nova Iorque arrasada pela depressão econômica, fruto da quebra da Bolsa de Valores, em 1929.

A cena inicial de Tempos Modernos, ainda na fábrica, em que o Vagabundo surta, é o exemplo mais contundente do uso do corpo como linguagem de irreverência e grito.

Não é necessário dizer que nada dará certo para o Vagabundo. E não tem que dar mesmo! Senão, como construir um roteiro?

O velho Chaplin necessita de pretextos, de infortúnios, de enganos, da ineficiência do Estado, do bom e disponível policial, enfim, tudo é muito bem arranjado para que ele possa exibir diante de nossos olhos seu encantador repertório de pantomimas. São pantomimas desenhadas pela precisão técnica, pelo gesto afetivo e pela ironia cáustica. A cena inicial, ainda na fábrica, em que ele surta, é o exemplo mais contundente e memorável do uso do corpo como linguagem de irreverência e grito. Portanto, como não esperar que Chaplin nos desenhe, na tela, em preto e branco, o próximo gesto, com a leveza e a graça de quem carrega em si o peso de uma humanidade esperançosa?

Cabe falar um pouco do processo criativo do artista Chaplin. Quando iniciava uma nova produção, não necessariamente tinha um roteiro em mãos. Pasmem! Ele não começava o projeto sentado em cima de um roteiro seguro e testado. Charles Chaplin trabalhava com argumentos. Tinha a ideia do que queria, mas não sabia por onde exatamente encaminharia a construção da narrativa. Juntando-se à sua mania de perfeição, podemos imaginar o alto custo de esforços e de dinheiro despendidos até a finalização do projeto.

Com Tempos Modernos, ressurge o grande conflito de Chaplin: a necessidade de manter seu Vagabundo mudo.

É nesse diapasão criativo que aconteciam dezenas de refilmagens de uma única cena. E, não à toa, às vezes se obrigava a refilmar determinada cena pela simples razão de mudanças na direção da narrativa. A antiga cena não mais se encaixava na nova proposta. Quem vai ao cinema assistir a um de seus filmes, com a arte toda pronta, não pode imaginar o hercúleo esforço mental e financeiro empreendido por Chaplin para dar à sua criatura o acabamento artístico que ela merecia. Ela, e o público.

É chegada a hora de irmos ao ponto central da nossa discussão. É sabida a inquietude de Chaplin em ter que trabalhar com o cinema sonoro. Essa preocupação já havia transparecido antes, em menor intensidade, em 1931, com Luzes da Cidade. E eis que agora se depara novamente com seu grande conflito: a necessidade de manter seu Vagabundo mudo. Afinal, por que teria que falar? Chaplin construiu uma linguagem corporal lúcida, eloquente e fabulosamente original. Para que a voz se o corpo diz tudo o que é necessário para a construção dramática da narrativa? Carlitos é corpo, e o corpo é a sua voz.

Tempos Modernos parece ficar a meio caminho em direção ao sonoro.

Chaplin vai resolver essa questão de uma maneira muito habilidosa. Nenhum som sairá da boca de qualquer personagem. Mas sairá por outras circunstâncias e por outros meios. Da vitrola, quando uma voz explica as absurdas utilidades de uma máquina alimentadora. Dos telões instalados na fábrica, de onde sai a imagem e voz (muda) do patrão. Sons de trilhas sonoras que acompanham, quase na intimidade, a evolução das cenas. Temos ainda os curtos-circuitos das máquinas, os sinos, a campainha, apito, tiro de revólver, notícias de rádio, sirene de camburão, e até ruídos de indigestão estomacal. Todos os sons possíveis estão no filme, menos a voz humana in natura. Diante disto, Tempos Modernos parece ficar a meio caminho em direção ao sonoro. Mas, na sua essência, permanece totalmente mudo.

E chegamos ao ponto em que finalmente iremos ouvir o som da voz do Vagabundo. Chaplin reservou o momento para a genial última cena, quando Carlitos canta e dança no salão de um Café em que trabalha com sua amada. Nervoso, ele se põe a ensaiar e a decorar a letra da música. Ora, deveríamos ouvir as palavras emitidas pelo Vagabundo! No entanto, não é o que acontece, pois, no momento em que Chaplin ensaia seu número nos bastidores, no salão ocorre uma apresentação musical. Trata-se de um coral, cujas vozes e instrumentos irão propositadamente abafar a voz de Chaplin.

Na despedida do Vagabundo, Chaplin também se despede de sua dolorosa maçã.

Mas haverá a oportunidade de ouvirmos, na sequência, a voz de Chaplin apresentando o seu número. No entanto, ao entrar no salão, ele perde a cópia da letra da música. Sem ter ainda memorizado a letra, Carlitos obriga-se a improvisar. O que vamos ouvir serão sons ininteligíveis e incompletos que disfarçarão o esquecimento da letra original. Eis! Ele fala, mas ele não fala. São apenas cômicos grunhidos! Sendo assim, o máximo que Chaplin permitiu para a história do seu Vagabundo foi que tivéssemos uma vaga ideia do timbre da sua voz. O que valeu mesmo, e o que nos fica, é a última cena memorável do seu último filme mudo.

Para finalizar, um toque de memória afetiva. A maçã de Chaplin. Ela aparece em duas ocasiões e nos remete à sua infância, quando o menino Chaplin vivia em um orfanato, em Londres. Certo dia, cobiçara tanto uma maçã, símbolo de requinte, que, ao tentar se apoderar dela, acabou sendo ferozmente punido pela Instituição. Sendo um pouco sentimental, parece-nos, na despedida do Vagabundo, Chaplin também se despede de sua dolorosa maçã.

 

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1 Comentário

  1. […] sonoro. Prova disso é que poderemos ver em seus filmes, nesse, Luzes da Cidade, e no seguinte, Tempos Modernos, a inserção pontual do som agindo como uma personagem disposta a ter alguns segundos de fama. […]

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