O peso do pássaro morto
A CURA NÃO EXISTE
A protagonista de O PESO DO PÁSSARO MORTO, 161 pg., Ed. NÓS, romance de estreia de Aline Bei, é surpreendida por um acontecimento que irá alterar o curso natural de sua vida. Estamos falando do abuso sofrido por ela, aos dezessete anos. Diante da perplexidade do inesperado ato, fica a pergunta: poderia ter sido evitado? Esta é a questão que se coloca e que se transforma na origem da culpa — por que a vítima não consegue evitar o abuso? Sabendo que não há mais volta, a protagonista se vê obrigada a refazer seu caminho. Vai em busca de um abrigo emocional para se proteger da dor. Decide que não há cura para o que aconteceu. A dor a acompanhará para o resto da vida. Até o último suspiro. Aline Bei até tenta oferecer à sua personagem pequenas redenções. Em vão, pois a história já foi antecipadamente escrita.
Aqui cabe um pequeno parêntesis. Essa é a cruel fatalidade do abuso: o algoz, ao abandonar a cena do crime, deixa inoculado na vítima a semente da culpa.
A protagonista de O Peso do Pássaro Morto é um ser humano surpreso, vivendo dentro de um vazio.
A estrutura romanesca de O Peso do Pássaro Morto é fielmente cronológica. Numa sequência de idades específicas, a protagonista vai narrando seus movimentos internos, na incessante busca de preencher lacunas existenciais. Ela está disposta a revelar sua história como forma de entendimento, alívio e cura. No entanto, a cada revelação, depara-se com uma perda.
O relato se inicia com fatos ocorridos na vida da protagonista, quando de seus oito anos, depois segue pela adolescência e juventude, até atravessar a vida adulta e chegar aos cinquenta e dois anos. Ao longo de todo esse trajeto, a protagonista busca referenciais que a façam entender por que as coisas teimam em fugir a seu controle. Ela parece percorrer uma vida à mercê de casualidades, indigna que é de tomar as rédeas do próprio destino. Um ser humano surpreso, vivendo dentro de um vazio.
O estupro é uma violência revestida do poder absoluto.
Criança tímida, com baixa autoestima, socialmente deslocada e vítima constante de bullyings, a protagonista constrói para si uma sólida amizade com sua colega de escola, Carla. O fator determinante que irá moldar sua alma sensível de menina solitária será a perda da amiga, vítima de ataque de cão feroz. A morte de Carla vai prepará-la para uma existência de desencontros. É desta maneira que a narradora relata, numa moldura poética contagiante, sua dor diante da morte da amiga: “… pelo pescoço subiu um grosso de choro que eu não deixei chegar no olho”.
A autora, ao construir uma identidade dolorosa para sua personagem, vai moldá-la do ponto de vista de sua construção, de forma a preparar sua ação máxima e contundente, que está por acontecer logo adiante, aos dezessete anos. A personagem transforma-se em receptáculo da própria dor, ao se ver indefesa diante da inesperada agressão. As mãos que cinzelariam para sempre o sofrimento em seu corpo são as mesmas mãos que ela tanto se comprazia em afagar. O estupro não é um ato fortuito, que a vítima poderia muito bem evitar. Essa é a inaceitável falácia. O estupro é uma violência revestida do poder absoluto, porque exercido por animalesca maldade.
Bete é a ponte segura que encurta momentaneamente a distância entre mãe e filho.
A partir da gravidez decorrente do ato vil, vamos presenciar a protagonista levando uma vida a esmo, carente de significados. Ela se engaja numa luta surda entre amar ou rejeitar o filho. Vê-se incapaz de estabelecer uma relação de afetos concretos, portanto, duradouros. É aqui que reside a base dramática da narrativa: quer amar o filho, mas seu corpo e sua alma o rejeitam. E ela se submete a essa rejeição, sem conseguir vencê-la racionalmente.
Para estabilizar a frágil relação entre mãe e filho, surge na trama a vizinha, Bete, contratada pela protagonista para cuidar do filho enquanto trabalha. É por meio de Bete que a mãe camufla sua incapacidade de expressar amor materno. Bete, essa mulher “gorda por dentro e por fora”, vem suprir os afetos que ela não tem condições de oferecer. Como ela própria reconhece, Bete é a ponte segura que encurta momentaneamente a distância entre ela e o filho.
O tapa na cara que a mãe dá no filho será o peso do pássaro morto que ela carregará para o resto da vida.
No entanto, com a morte precoce de Bete, a protagonista se vê frente a frente com a realidade chamada “filho”. Não há mais como disfarçar. A ruptura está desenhada, pronta para acontecer a qualquer momento, emoldurada em uma ação impulsiva. O tapa na cara que ela dá no filho, por ter este matado um passarinho, será o peso do pássaro morto que ela carregará para o resto da vida. E que abrirá espaço para que a dor estruturante (o estupro) se manifeste em toda a sua complexa intensidade.
Ao ser estuprada pelo próprio namorado e, desse ato, ter engravidado, ela toma a decisão de não abortar. Na confusão de afetos e desilusões, estava convicta de que aceitaria o filho. No entanto, a decisão acaba gerando inadequações emocionais. Quis assumir o filho, não o matou; ao não conseguir assumir o filho, o certo talvez seria tê-lo matado. Mas, como ela mesma reconhece — “não matei”.
A história da protagonista vai se fechando sob o peso de sucessivas desesperanças e de esforços inúteis na tentativa, em vão, de se reconstruir. É a mulher solitária que se tranca dentro de um cotidiano sem pontos de fuga. E a solidão se concretiza com a última ruptura, que se dá quando, a caminho de visitar o filho em Ouro Preto, ao parar para abastecer o carro, acaba acolhendo um cão sarnento. Ao reconhecer no cão a ideia do afeto verdadeiro, dá meia volta e vai viver sua vida com a inseparável companhia do novo amigo. É o derradeiro suspiro: o filho passa a existir apenas em raríssimos (des)encontros protocolares.
Em O Peso do Pássaro Morto, a autora transforma em fábula o que era apenas fragmentos de dor.
Aqui se chega ao biombo emocional, atrás do qual a protagonista passa a se esconder. É seu lenitivo existencial. Decididamente, não há cura para a dor que carrega. E, para justificar sua rendição como mulher e mãe, ela reduz sua vivência afetiva à companhia de um cão. E, quando sua última razão de existir se for, ela entende que será o momento de encerrar o triste espetáculo da vida.
Nesse seu romance de estreia, O Peso do Pássaro Morto, Aline Abei apresenta a vida da protagonista a partir do olhar de quem perscruta sentimentos e emoções com as afiadas ferramentas da sensibilidade poética. Ela se paramenta desse estilo lucidamente encantatório para transformar em fábula o que era apenas fragmentos de dor. Sabemos que o escritor se faz anunciar pelo estilo. Mas o estilo é apenas a forma. Essencial. Só que o estilo tem que fazer chegar ao leitor uma visão emocionalmente inteligível sobre o que o autor sente e pensa. E aqui se faz toda a habilidade de Aline Bei. Sua voz é lúcida e potente, pronta para ser ouvida para além do nosso tempo.
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