Roberto Gerin

Resenha A cor púrpura, por Roberto Gerin

A DOR PÚRPURA

O filme A COR PÚRPURA (154’), direção de Steven Spielberg, EUA (1985), é baseado no belo livro homônimo de Alice Walker, publicado em 1982, que daria a ela o Prêmio Pulitzer, no ano seguinte. Esse livro surgiu das vísceras do mundo agrário no interior negro do sul dos Estados Unidos, portanto, surgiu lá dos confins de uma África que teve seus filhos exportados para a escravidão nas Américas. Se é um hino à amizade e ao amor, é, antes de tudo, um hino à vida. É preciso denunciar as barbáries do patriarcado e do racismo, mas também se faz necessário entender como se constituem as relações familiares e seus reflexos nas relações sociais. É um filme sobre os fracassos convertidos em esperanças, dores que se perdem em meio ao riso. O lema é não deixar que os sofrimentos do passado atrapalhem o viver. Nada mais desejável que um dia após o outro para aplainar as dores e retroalimentar os sonhos.

A Cor Púrpura de Steven Spielberg respeita A Cor Púrpura de Alice Walker.

Este é o hino cantado em cada página do livro de Alice Walker, e é esta mesma esperança que Steven Spielberg leva para a tela, conservando a grandeza humana que permeia os fatos a serem repudiados. O feliz roteiro de Menno Meyjes, que respeita o livro, inclusive utilizando-se dos diálogos de Alice Walker, vem preservar o grito original da obra literária: o de que a vida, a despeito de tudo, tem que continuar.

Antes de analisarmos o filme, cabe falar um pouco de Alice Walker, para entender como surgiu essa obra prima da literatura norte-americana, transformada em belíssimo filme. Menina feliz e extrovertida, nascida no interior da Geórgia — o coração negro do sul dos Estados Unidos —, Alice acaba sofrendo, na infância, um grave acidente. Ao brincar com os irmãos, perde a visão do olho direito. Este fato marcaria sua vida. Mais introspectiva, volta-se inteiramente para a leitura e a escrita.

Na ausência da cor púrpura, vem a dor machucada de Celie na gravidez do abuso.

Ativista, ao trazer para dentro da sua literatura as dores do racismo, ela não endeusa os negros em nome de uma causa superior — as lutas pela igualdade racial. No embate com o branco, o que se discute são os cotidianos das famílias negras. E nesses cotidianos, o que vamos ver são manifestações de poder, de abusos, de amores mal resolvidos, amizades duradouras, enfim, a santidade dos palcos das lutas por igualdade de direitos não será a mesma santidade entre quatro paredes. Esta abordagem honesta, trazida inteira para o filme, dá credibilidade humana e filosófica à narrativa fílmica.

O filme já começa impactando com a cor púrpura envolvendo as duas irmãs, Celie e Nettie, que, num caminhar afogueado de dança e felicidade, compõem a paisagem de um mundo idílico, do qual jamais pretendem se separar. Assim diz a letra da brincadeira: “Makidada, nada vai afastar minha irmã de mim. Makidada, eu e você nunca vamos nos separar”. Na ação seguinte, na mesma paisagem, mas sem a cor púrpura, vem a dor machucada de Celie na gravidez do abuso. O idílio já não é mais o mesmo, mas a obsessão de nunca se separarem está ainda mais viva. Sabem que precisam estar juntas para enfrentarem o mundo. Leia-se, machismo, abuso, racismo, ignorância.

Sem alternativa, o desespero leva Nettie a fugir de casa.

Celie e Nettie são duas irmãs que perdem o pai ainda pequenas e vão morar na casa do padrasto, de quem sofrerão ameaças psicológicas; e Celie, abusos sexuais. Muito pequenas, crescem apegadas uma a outra, com juras de nunca se separarem. São estas juras a fortaleza de um amor que nunca se renderá ao esquecimento e à distância. E a poesia, sobrevoando a obra, compõe os gestos de afeto que repercutirão ao longo de suas existências.

Celie (Desreta Jackson, menina), após gerar duas crianças por conta dos abusos de quem ela considerava ser seu pai, casa-se com Sinhô Albert (Danny Glover, perfeito), viúvo que precisava de uma mãe e de uma doméstica (mais doméstica que mãe) para cuidar de sua casa e prole. Logo se revela também um homem cruel, insensível aos sentimentos de Celie, fazendo dela uma mera propriedade, a quem pode espancar sob o menor pretexto, na maioria das vezes, inexistente. Ao receber como hóspede Nettie (Akosua Busia, expressiva), que fugira dos assédios do pai, Albert vai replicar os mesmos comportamentos abusivos. Sem alterna

Será a dor da saudade, simbolizada na cor púrpura, que moverá Celie para a vida.

Está montado o arco narrativo que vai explorar com muita sensibilidade e força dramática a história de Celie, cujo relato percorrerá praticamente a primeira metade do século XX. São histórias que se pulverizam em inúmeras personagens que vão nascendo e crescendo junto com a narrativa, tendo sempre como força motriz a obsessiva esperança de Celie de um dia receber uma carta com notícias da irmã.

Ao se separarem, esta foi a promessa: a de que manteriam contato por cartas. E eis a principal maldade do Sinhô Albert, e que se constituirá no fel criativo da trama de A Cor Púrpura. Por vingança — foi rejeitado por Nettie —, Albert recolhe e esconde todas as cartas enviadas por Nettie ao longo de trinta anos! Será a dor da saudade que moverá Celie para a vida.

A questão racial não é mero pano de fundo em A Cor Púrpura.

Na obra literária, a história de Celie é contada em forma de cartas que ela escreve para Deus — “Querido Deus”, é assim que ela inicia as cartas. Deus é o único ser, mesmo que ausente, com quem Celie pode conversar e ressignificar seus sofrimentos. É em cima desta singela estrutura epistolar que a narrativa se conduz nas suas dolorosas verdades. O filme mantém a mesma estrutura, aproveitando a voz de Celie como narradora onipresente. Esta opção dará ritmo e pulsão às imagens que vão se construindo diante de nossos olhos.

A questão racial não é mero pano de fundo em A Cor Púrpura. Apresenta-se em cada cena, em cada diálogo. Mas o que salta aos olhos é a narrativa da condição da mulher negra naquela sociedade rural. Traz a síntese do heroísmo feminino. A menina que nasce em meio a homens veio ao mundo para sofrer, eis a questão básica desta incansável discussão da vulnerabilidade feminina diante do machismo abusivo. Sofia, a corajosa nora de Albert, vai à luta o tempo todo. E sua grande decepção foi, depois de ter lutado contra pai, tios e irmãos, ter agora que lutar contra o marido. Prefere abandoná-lo.

A Cor Púrpura seria a primeira direção de drama de Steven Spielberg.

O contraponto das belíssimas construções do feminino negro nas figuras de Celie, Shug Avery e Sofia surge da histriônica figura da mulher branca do prefeito, Millie (Dana Ivery). Ela parafraseia a insensibilidade sociorracial na poderosa sequência de cenas, talvez uma das manifestações mais cínicas que já se viu no cinema, em que Sofia ensina a patroa a dirigir. A fragilidade do branco diante de sua obra macabra (o racismo) extrapola qualquer possibilidade de deleite e riso por parte do espectador. Antes, é motivo de espanto.

Steven Spielberg, à época em que foi indicado para dirigir o filme, era visto como um diretor talentoso e promissor, mas que havia feito apenas filmes infanto-juvenis de grandes sucessos. A Cor Púrpura seria sua primeira direção de drama e o resultado era esperado com grande expectativa e alguma desconfiança. Diretor branco, jovem em processo de amadurecimento encarando temáticas espinhosas, qual seria o resultado? Qual seria o mergulho?

O filme A cor Púrpura eleva o feminino à sua grande máxima.

Quando do lançamento, houve reticências quanto a seu trabalho, tanto que o filme foi indicado a onze estatuetas, nenhuma delas a de Melhor Diretor. Será que um diretor mais experiente em dramas, de preferência negro, traria uma pegada mais forte e fidedigna às realidades trazidas pelo livro? Como saber. Mas não se pode negar que A Cor Púrpura de Steven Spielberg demonstra qualidades que fazem o filme sobreviver ao tempo. E hoje fica difícil entender (ou não) por que o filme não levou, em 1986, sequer uma estatueta. Das onze indicações!

Em suma. O filme, amparado por maravilhosa obra literária, é um cântico de esperança em meio às trágicas vivências de mulheres pretas aprisionadas, pela terrível máscara do preconceito, em becos sociais. E ali são esquecidas por uma sociedade que se nega a reconhecê-las. A aplaudi-las.

É um ato de humildade reconhecer que a dor não pode ser confinada à ficção.

No entanto, o filme, nas figuras estonteantes das atrizes Whoopi Goldberg (Celie), Margaret Avery (Shug Avery) e Oprah Winfrey (Sofia), eleva o feminino à sua grandeza máxima. Elas funcionam como condutoras de realidades contra as quais as mulheres pretas têm que lutar o tempo todo. Mesmo a subjugada Celie, vai ela aos poucos sendo conduzida para sua consciência de ser humano mulher, preta, feia e pobre, fazendo destes “atributos” suas armas de viver. E é tão forte, tudo, que a força humana do livro conduz a narrativa cinematográfica. É o cinema se debruçando humildemente diante de temáticas que ele apenas tenta reproduzir, com o cuidado de não se apoderar de verdades absolutas. É um ato de humildade reconhecer que a dor não pode ser confinada à ficção.

 

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