Roberto Gerin

Resenha Ataque dos Cães, de Roberto Gerin

QUEM É O CÃO QUE ATACA?

Sempre quando surge um filme cuja qualidade artística está acima da média, e que por isso chama a atenção do grande público, passamos a ouvir as mais diversas opiniões e exclamativos sobre a obra em questão. É o que está acontecendo com o enigmático ATAQUE DOS CÃES (128’), direção de Jane Campion, EUA (2021). Inclusive esse ar enigmático já começa pelo título. A que cães se refere o título? Depois ficamos sabendo que a menção vem de uma referência bíblica, um alerta divino à aproximação da maldade. E a presença do cão invisível se materializa na visão de um cão desenhado na encosta das colinas de Montana que cercam a fazenda dos Burbanks. O alerta está lá, estampado no horizonte.

Por ter uma pegada de faroeste, Ataque dos Cães traz embutido em sua proposta um risco considerável, principalmente frente aos amantes desse gênero. Falo do ritmo. Sim, faroestes que se prezam tem uma pegada rudemente frenética, com trotear de cavalos que antecipam o próximo tiroteio. Em Ataque dos Cães sequer uma arma é mostrada na tela. A morte aqui é fermentada de outra forma, lenta, tecida, planejada, oculta, sem estalidos. Reside nesta proposta a força dramática do filme, que desemboca em um desfecho convincente e até surpreendentemente bem-urdido. Portanto, em suas discussões em mesas de bar, não peçam ritmo de faroeste a Ataque dos Cães. Atentem-se para o que o filme oferece. Ritmo intimista, perversamente silencioso.

Ataque dos Cães é baseado no romance de Thomas Savage, lançado em 1967, cujo título em inglês é The Power of the Dog.

A personagem mais sedutora de Ataque dos Cães, ocultamente feroz, é Phil Burbank, estrelada por uma feliz (e merecedora do Oscar) atuação de Benedict Cumberbatch, um caubói na verdadeira acepção da palavra. Gosta de gado, da lida da fazenda, toma banho em rios, mas só de vez em quando, afinal os salamaleques sociais não são muito a sua praia. É rude, pretensamente perverso e de inteligência sagaz. Enfim, uma figura marcante, deslocada no tempo e no espaço.

Contrapõe-se ao perfil ameaçador de Phil o seu irmão George Burbank, com a atuação precisa e minimalista de Jesse Plemons. Plemons compõe uma personagem totalmente integrada ao sistema. George Burbank é civilizado, ostenta figurino urbano e se movimenta por meio de poucas palavras e muita sensibilidade. A bem-construída relação de personalidades opostas entre os irmãos, geradora potencial de conflitos, é um dos pontos altos da dramaturgia do filme. Fazendeiros ricos e solteiros que ocupam o imenso casarão da fazenda, gerindo uma bem-sucedida criação de gados, até que… George se casa com uma conhecida viúva e tal fato descontenta e desequilibra Phil.

Ataque dos Cães é baseado no romance de Thomas Savage, lançado em 1967, cujo título em inglês é The Power of the Dog. Savage é um escritor estadunidense que se dedicou ao gênero faroeste e que empresta a este romance muito da sua biografia. Peter, o narrador testemunhal da história, se transforma em alter ego do autor. É a realidade sufocante mostrada a partir de Peter, filho da viúva Rose, com quem George Burbank se casará. E ao ir morar com a mãe no grande casarão, Peter precisará agir para defender Rose dos ataques caninos de Phil, o selvagem.

O desenho do perfil equilibrado do irmão George vai funcionar como a batuta que determinará o ritmo de Ataque dos Cães.

O filme exibe em seu início a chegada dos caubóis e seu gado a uma estalagem onde pensam em comer e pernoitar. As cenas do jantar desenham todas as relações que irão compor o roteiro nas próximas duas horas. São cenas para o espectador prestar muita atenção se quiser fazer uma leitura mais precisa do filme. Apresentam-se ali as quatro personagens responsáveis por uma teia de relações doentias e perigosas.

Nesse contexto, o desenho do perfil equilibrado do irmão George vai funcionar como a batuta que determinará o ritmo do filme, mantendo o entrecho em sua firme trajetória rumo ao desfecho. George, na figura de Jesse Plemons, é a personagem menos badalada pela crítica e pelos prognósticos de prêmios. No entanto, a nosso ver, é esta personagem que dá total verossimilhança e identidade artística à trama.

George Burbank, naquela mesma noite do jantar, se descobre apaixonado por Rose, a dona da estalagem. O filho Peter, que a ajuda nos serviços de cozinha e restaurante, é alvo das zombarias de Phil. Diante das risadas dos caubóis sobre as maldosas insinuações do patrão a respeito da sexualidade do adolescente, resta ao contrariado George consolar a mãe. George se casa com Rose sem pedir consentimento aos pais e ao irmão. Ao se mudarem para o casarão, um cenário sombrio, à base de madeira escura, portanto perfeito para a proposta estética da diretora, inicia-se a longa e lenta jornada de pequenas agressões, sutis infâmias, maldades distribuídas em cada degrau da escada que leva aos quartos, estampando na tela em close o rosto desamparado e assustado de Rose, em perfeita atuação de Kirsten Dunst, com certeza também merecedora de uma estatueta.

Peter aceita a aproximação de Phil, mas não aceita Phil.

São duas as relações que movimentam o enredo. A primeira delas, menos sutil, mas não menos perversa, é a forma como Phil se aproxima de Rose. Ele não fez questão de esconder o quanto ficou contrariado com o casamento do irmão, e menos ainda faz questão de esconder seu maldoso descontentamento com a presença da intrusa em sua casa. Ao saber pelo irmão George de que este havia se casado com Rose, o espectador vai poder, na sequência, presenciar uma das cenas mais icônicas do filme. O inveterado Phil vai até o estábulo e começa a espancar uma bela égua, enquanto aos berros a chama de vagabunda e puta.

A segunda relação é bem mais complexa, pois se cerca de várias temáticas que transitam pelo filme, ora de forma poética, ora com uma nocividade que só os machos ameaçados em sua virilidade conseguem construir. A ambígua aproximação de Phil em relação a Peter define o núcleo dramático da trama. E a base comportamental dessa relação parte de Peter, não de Phil, cuja incerta sexualidade é a base do conflito. Peter aceita a aproximação de Phil, mas não aceita Phil. É esta problemática que vai impulsionar a narrativa rumo a seu clímax, numa feliz tessitura do que é uma relação abusivo-destrutiva.

Os figurinos, um dos pontos altos da produção, definem à perfeição os perfis das personagens. É só observar como cada uma delas se veste para tirar as conclusões sobre suas estruturas psíquicas.

Toda essa riqueza de mínimas atitudes e delicadezas de gestos faz de Ataque dos Cães uma sinfonia de silêncios.

Primeiro, o figurino sulfúrico de Rose. Ele mostra a mulher frágil e assustada que se apoia na bebida (a temática do alcoolismo) como forma de suportar as pressões de Phil. Este veste o figurino do vaqueiro, que esconde atrás de uma exuberante masculinidade todas as suas inquietações existenciais motivadas justamente na sexualidade. Peter soma a seu figurino comportado os belos gestuais que compõem a delicadeza firme de um rapaz aparentemente desprotegido, mas que se constitui num perfil moldado na determinação e na coragem. O contraste perfeito para a falsa masculinidade do vaqueiro, diríamos. E por fim o figurino impecável de George, o gentil homem que se engaja perfeitamente nos ritos sociais, mas que conserva a alma pura e um espírito, se não sagaz, com certeza protegido por princípios dos quais ele não abre mão. Portanto os contrastes bem-definidos determinam o papel de cada peça no jogo cênico.

Antes de terminar, permitam uma última análise. O filme, pela forma como foi tramado, pelo ritmo intimista adotado e, acima de tudo, por se tratar de relações puramente familiares, presta-se, no frigir dos ovos, a nos mostrar como cada um de nós ocupa seu espaço no mundo. Parece que esta é a dinâmica existencial do filme. Vivemos o tempo todo, dia após dia, tentando buscar o significado da nossa presença, seja na estrutura familiar seja na estrutura de trabalho, até na rua, quando, ao caminhar, somos obrigados a nos desviar de outro corpo que se apresenta diante de nós, em direção contrária. É esta perspectiva, parece-nos, que dá razão à existência artística do filme. É quando concluímos que nenhum movimento é gratuito, portanto, livre. Sempre teremos que ocupar algum espaço, esta é a nossa sina.

Em suma. Pode-se dizer que do espectador é exigido que ele saiba assistir ao filme. Parece estranho dizer isso, mas como Ataques de Cães se estrutura em cima de olhares, pausas, sutilezas de intenções, delicadezas de gestos, simbologias que tentam trazer à tona desejos ocultos e impulsos perigosos, principalmente de cunho sexual, toda essa riqueza de mínimas atitudes faz do filme uma sinfonia de silêncios, exigindo que o espectador coloque suas sensibilidades em alerta. Neste sentido, o filme procura privilegiar o espectador, convidando-o a ocupar seu papel de coadjuvante.

 

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