Sem Destino
AS POSSIBILIDADES DOS SONHOS
O filme SEM DESTINO (95’), direção de Dennis Hooper, Estados Unidos (1969), parece, à primeira vista, ter-se fixado lá atrás, em uma época que ele tão bem retrata, mas que já não mais existe. Esta pode ser a sua fragilidade. Ser um cinema datado. O filme de uma geração. Mas hoje, olhando à distância, com as lentes da história (do cinema), vemos que o filme vai além de apenas representar a tumultuada década de 1960. Foi uma década de muita agitação cultural, que levaria multidões, principalmente os jovens, a sonharem com outras realidades possíveis. Foi uma época em que couberam os sonhos de liberdade (às vezes total), as contestações ao que era opressivo, dominador e vigente, os grandes protestos contra a voracidade do capital e a ganância militar americana. O que o filme vem nos mostrar é que estes sonhos libertários foram se distanciando perigosamente da realidade. Para muitos, Sem Destino coloca a pá de cal que encerra a contracultura. Era o ano de 1969, e o mundo aos poucos ia voltando a ser como ele sempre foi.
O que coloca o filme Sem Destino para além da sua época foi ter sido ele produzido fora dos padrões hollywoodianos, o que obrigou Hollywood a sair do marasmo criativo e ir em busca de novas alternativas artísticas, além de ter que remodelar seus modos de produção cinematográfica. Surgem daí novos conteúdos dramáticos, novas estéticas, diretores em ascensão com mais liberdade de decidirem que ideias colocarem nas telas. Era o começo do cinema de autor, uma autoria preocupada em falar o que o público queria ouvir. O chefão do estúdio teve que ficar um pouco mais manso, e menos rançoso.
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Nesta perspectiva, vemos um quase inexperiente Dennis Hooper se aventurando na direção do filme. E seu companheiro de estrada, agora também produtor Peter Fonda, disposto a botar a mão na massa para além dos closes das câmeras. As mudanças de atitude perante o fazer cinema vieram possibilitar voos artísticos mais ousados e mais próximos do público. Para isso bastava ter ideias claras e criativas que pudessem ser filmadas. Nisto Sem Destino é inquestionável. Ele foi a ruptura de uma era que chegava a seu esgotamento. E teve a capacidade de resumir uma década com a simplicidade da arte. Está certo que a primeira versão do filme chegou a quase quatro horas de duração, o que obrigou a edição a afiar a tesoura e ir cortando, até chegar na bela montagem de apenas 90 minutos. O suficiente para dizer o que tinha que ser dito.
Dois motoqueiros, Wyatt e Billy (referência aos dois famosos heróis do faroeste, Wyatt Earp e Billy The Kid) — respectivamente Peter Fonda e Dennis Hooper —, ganham a vida traficando drogas a partir do México. Depois de uma grande e rendosa negociata, resolvem acionar os motores de suas possantes motos recém-adquiridas e pegar a estrada. A sinopse do filme, portanto, é uma linha reta traçada por rodovias tortuosas, que sai do México, percorre o sul dos Estados Unidos, até chegar a New Orleans, onde os dois pretendem passar o Mardi Gras (carnaval). E eles têm apenas uma semana para percorrer o longo trajeto.
Enquanto aceleram, vão encontrando pelo caminho belas paisagens, que o filme mostra em demoradas sequências, e sempre acompanhadas por uma bem selecionada trilha sonora — as músicas são um item de luxo no filme. Passam por situações típicas de quem viaja pelo interior e se envolve em episódios nem sempre agradáveis, evidenciando o perigoso embate entre o retrógado sul dos Estados Unidos e a irreverência da cultura hippie. Este é o roteiro. Aliás, um quase não roteiro. Peter Fonda e Dennis Hopper tinham uma ideia de fazer algo assim… que fosse parecido com um road movie. Surfando em alucinógenos, foram organizando suas idéias até colocá-las em ação. Pegaram a estrada, só pra ver no que ia dar. E deu no que deu. Um clássico do cinema.
O belo filme Sem Destino representa a caráter uma geração, uma década, um tempo que se foi.
Mas é certo que o filme não foi um simples e feliz acidente. A estrutura narrativa é bem pensada, bem amarrada, e sua condução para o desfecho é de uma precisão tal que não há quem não se surpreenda com o final. Até cenas aparentemente insignificantes, e aqui damos um exemplo, têm sua função na arquitetura dramática da narrativa. No começo do filme, prestes a pegar a estrada, já acelerando sua moto, Wyatt — também conhecido como Capitão América, em função do seu figurino raiz, desfraldando várias bandeiras americanas nas roupas e na moto — olha para o relógio, consulta as horas, depois tira o relógio do pulso e o joga fora. Eis uma atitude bem contracultura. Dane-se o tempo, a liberdade é minha!
Ainda evidenciando a inteligência narrativa do filme, vale lembrar que o cenário escolhido foi o sul dos Estados Unidos, um ambiente sabidamente retrógrado, preconceituoso e culturalmente fragmentado. É deste ambiente hostil que a dramaturgia se sustenta e leva a seu fim trágico. Eis o oportunismo criativo dos roteiristas Dennis Hopper, Peter Fonda e Terry Southern.
Devemos concentrar a análise do filme em duas cenas em sequência, porque está nelas a base conceitual do filme.
A primeira cena é ilustrativa. A segunda é uma reflexão sobre a primeira. E para que estas reflexões chegassem aos dois motoqueiros, fez-se necessária a introdução de uma terceira personagem. No meio do caminho, após uma incômoda intervenção dos motoqueiros em um desfile cívico em uma das pequenas cidades do interior, os estranhos são levados à delegacia e presos. Na cela, encontram o advogado George Hanson, um pândego alcoólatra playboy, que funcionará como o ponto de consciência sobre tudo o que está acontecendo nos Estados Unidos. Será da boca de George, na espetacular interpretação de Jack Nicholson, que o levaria a ser indicado à estatueta de Melhor Ator Coadjuvante, que nós espectadores, de qualquer época, ouviremos as explanações sobre o que acontece (aconteceu) na década de 1960.
A primeira cena, como colocada acima, são os três (já que o advogado topou seguir de carona com os motoqueiros até New Orleans) sentados em uma lanchonete, em mais uma cidadezinha sulista. O pouco tempo que ali ficam, presenciam uma avalanche de preconceitos que são lançados contra eles, sem nenhuma reticência. É o atraso cultural em sua mais perfeita insolência. Percebendo a pressão, as ofensas e as ameaças, os três resolvem se retirar e seguir caminho rumo ao Mardi Gras.
A segunda cena que se segue é a que explica a anterior e prepara o desfecho. E aqui entra a personagem George Hanson, em diálogo com Billy, enquanto Waytt, mais apático, apenas observa. George vai mostrar a América se estranhando com a contracultura (cultura hippie). É a cultura da contestação, dos cabelos longos, da maconha, do amor livre, dos figurinos estranhos, cultura que é contra o opressivo modelo capitalista, contra o genocídio no Vietnã… George Hanson diz. “Eles não têm medo de vocês, mas do que vocês representam”. No que Billy responde. “Para eles nós representamos alguém que devia cortar os cabelos”. E George retruca. “Não! Para eles vocês representam a liberdade”. É neste ponto que a personagem do advogado se encaixa à perfeição no roteiro do filme. Filho de industrial, mas libertário, ele faz a ponte entre o sistema e a contracultura. “Mas a liberdade é possível!” — contesta Billy, que esquece o fato de que o tanque de sua moto está cheio de dólares sujos. George Hanson fecha as portas da liberdade ao dizer. “É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado”. Eis a pá de cal. Não foi possível varrer o capitalismo da face da terra. Tampouco o capitalismo que está entranhado no hippie Billy.
Para muitos, Sem Destino coloca a pá de cal que encerra a contracultura.
A repercussão da cena acima vai acontecer lá na frente, já no encaminhamento do desfecho, pela boca, agora sim, de um Wyatt desencantado, quando ele conclui que “nós estragamos tudo”. Esta é a frase oculta do filme, sobre a qual recaem inúmeras interpretações. E talvez o segredo da interpretação esteja na frase seguinte, agora de Billy. “Você fatura uma grana alta e aí é livre, sacou?”. O dinheiro traz liberdade, este é um dos lemas (falso) mais queridos do capitalismo. Ao se agarrar ao dinheiro, de fato estragaram tudo.
Em suma. O belo filme Sem Destino representa a caráter uma geração, uma década, um tempo que se foi. Houve sonhos, houve esperanças, mas a engrenagem da história é tão rígida, tão inexorável, que faz nos sentirmos seres indefesos diante do determinismo histórico que nos aprisiona, nos frustra e nos faz agir como se fôssemos apenas agentes de destinos sobre os quais não temos a menor ingerência, e muito menos o controle. Isto tanto é verdade que podemos, a qualquer momento, sermos abatidos feito uma mosca. Ah, mas ainda nos restam os sonhos renovados! As esperanças de nos livrarmos desta condenação de não pertencermos a nós mesmos! Afinal, somos seres pensantes, seres providos de vontade e capazes de escolhas. Estas dádivas ninguém nos tira.
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