Roberto Gerin

Crisântemos Tardios

UM CORAJOSO HINO AO AMOR

Na busca do sonho de ser ator, o diretor japonês Kenji Mizoguchi acaba entrando em contato com a sétima arte por meio de seu primeiro emprego como assistente de realização em uma companhia de cinema. Entrou nos estúdios para de lá nunca mais sair. Prolífico, produziu, na década de 1920, mais de cinquenta filmes mudos, dos quais a grande maioria se perdeu. Mas é na década seguinte, com o advento do cinema sonoro e já artisticamente maduro, que Kenji Mizoguchi consolida sua carreira de diretor, criando, a partir de 1936, uma sequência de obras primas. CRISÂNTEMOS TARDIOS, produção japonesa de 1939, é a coroação desta trajetória. Amparado no talento e na busca pela perfeição, Mizoguchi confirma seu estilo personalíssimo de fazer cinema. E insiste em temáticas que se tornarão recorrentes em sua filmografia, tais como o cotidiano da sociedade japonesa, a mulher no opressivo sistema patriarcal, a gueixa e a cortesã como imagens de desilusão e sofrimento femininos, o detalhismo na construção dos cenários, e a famosa técnica plano-sequência, mais conhecida como one scene, one shot. Mizogushi personifica o artista totalmente conectado à sua arte. Arte que se reflete na realidade do seu tempo.

Em Crisântemos Tardios, o diretor se volta para a sociedade japonesa do final do século XIX, inserindo na trama os conflitos sociais gerados pelo amor proibido entre o ator Kikunosuke, o herdeiro da tradição do teatro Kabuki, e a babá do seu meio-irmão, Otoku. Portanto, o roteiro ancora a narrativa em solo fértil, colocando o teatro Kabuki como o anteparo estratificante da rígida sociedade japonesa.

      O modelo da mulher que se sacrifica em nome do amor.

Por ser o filho herdeiro do grande ator do teatro Kabuki, Kikoguro, o medíocre Kikunosuke se vê hipocritamente bajulado pelos que o cercam. Mas ele sabe que, longe das coxias, é desprezado pela classe teatral. Todos o veem como um ator despreparado. Ciente de sua posição social dentro da hierarquia do teatro japonês, ser poupado das críticas e incensado por falsos elogios o incomoda. Gera nele incertezas quanto às suas atuações no palco e seu futuro como ator. Ele precisa de alguém que lhe diga a verdade. E um dia este alguém aparece na voz de Otoku, a babá do seu irmão mais novo. Ela confirma, com todas as letras, o que ele já pressentia.

Otoku se dispôs a ir pessoalmente ao teatro para assistir à atuação do jovem mestre. Queria se certificar se as críticas negativas da tia a respeito do desempenho de Kikunosuke procediam. A sinceridade de Otoku impacta tanto Kikunosuke, que ele acaba se apaixonando por ela. Sua vida pessoal e sua vida artística tomarão outro rumo. Ele sai da apatia, arregaça as mangas e vai de fato ser ator na vida.

A revelação da verdade é o ponto crucial para a estruturação da trama. Vai permitir a Kenji Mizoguchi delinear a figura feminina de Otoku dentro de um modelo para ele muito caro. O modelo da mulher que se sacrifica em nome do amor. Só que na cartilha de Mizoguchi, o autossacrifício é um ato de libertação. Mesmo que seu modelo dê passagem a perigosos eflúvios sentimentaloides, estes eflúvios não atrapalham a construção da imagem da mulher que se debate pelo direito de amar livremente. O amor que tenta se desgarrar dos ditames das leis machistas. Otoku ama livremente Kikunosuke. E seu destino heroico irá possibilitar que o amado se transforme no grande artista que ele precisa ser. Afinal, sem o artista bem-sucedido, não existirá o homem. Dentro da terrível lógica, ao se sacrificar por amor, Otoku estará impedida de usufruir do homem que ela ajudou a construir. Esta será sua terrível sentença.

 Mizoguchi foi um incansável crítico do padrão machista japonês. Em Crisântemos Tardios, a crítica parece se intensificar na construção do frágil Kikunosuke.

O ponto de virada da trama apontado acima, que é o exato momento em que Otoku fala a verdade, se completará nas atitudes futuras tomadas por ela em relação à vida artística de Kikunosuke. Sim, o amado não é um bom artista, mas é certo que ele poderá vir a ser e com isso fazer jus ao nome da família. E que ela estará do seu lado na busca pela perfeição, tão necessária às exigências do teatro Kabuki. É esta posição heroica de Otoku que dará à trama sua consistência narrativa. Otoku não apenas diz a verdade, mas ela também se oferece para o autossacrifício. Contempla o amado com efusivos e sinceros incentivos para que ele se dedique ao trabalho consistente, perseverante, e ela, nos momentos difíceis, estará ao seu lado para ampará-lo. Otoku está convidando o jovem mestre a amadurecer, a sair da cômoda situação de herdeiro do legado artístico da família para a situação desafiadora de conquistar para si o próprio espaço e o próprio nome.

Nesta dinâmica interpessoal, ao assumir perante a família a sua relação proibida com Otoku, e mais, ao permitir que Otoku o acompanhe na sua longa jornada para se tornar um ator respeitável e aceito na rígida hierarquia Kabuki, ele próprio se torna dependente dela. A babá, ao ser descoberto o seu amor pelo filho herdeiro, é imediatamente despedida. E Kikunosuke, seguindo o seu destino, previsto por Otoku, abandona a família e viaja por anos trabalhando em grupos de teatro itinerante, vivendo situações de quase miséria. Mas ele não faria isso sem ter ao seu lado o infinito amparo de Otoku. Nesta luta de anos, enfim Kikunosuke retorna vitorioso para Tóquio, onde é recebido com aplausos de sincera admiração. Só que ele retorna sozinho, uma vez que o amor continua proibido, e não há a possibilidade de Kikunosuke vivenciar a fama da sua arte ao lado da antiga babá. Pelo inconformismo social, a vitória é oferecida ao ator, jamais ao amante. Eis o cinismo existencial, tão caro a Mizoguchi.

Crisântemos Tardios reverencia a dor do amor quase impossível.

Kenji Mizoguchi foi um incansável crítico do padrão machista japonês. Em que pese em Crisântemos Tardios o protagonista ser o homem, construído em meio a fragilidades e inseguranças, é o feminino, com suas determinações, suas persistências e suas crenças na verdade e no amor, que importa. Este perfil feminino não é só um perfil feminino japonês. Ele se estende ao universo, o que faz deste filme de Mizoguchi e de tantos outros que escancaram as problemáticas feministas do século XX, um grito universal que clama pelo justo papel da mulher na sociedade moderna. Dentro deste heroísmo, é bem capaz que Mizoguchi, ao falar da mulher expropriada de seus direitos, não deixe de se lembrar de Suzu, sua irmã mais velha, que fora vendida como gueixa pelo próprio pai. No sistema patriarcal japonês, o corpo da mulher é sem dúvida uma fonte de renda para a família. Mizoguchi reverte este falso papel histórico. É a mulher que, ao se construir, constrói o homem.

Em suma. A verdade sempre é o ponto de partida para qualquer tipo de mudança que se queira provocar, seja na vida pessoal, quando nos confrontamos com nossos erros, seja na vida social, quando tentamos destruir a ideia de que supostas verdades nada mais são do que verdades que interessam ao outro e não a nós. Misogushi traz para o seu cinema uma esperançosa dimensão das possibilidades humanas que vão para muito além de nossas fraquezas históricas. Para Misogushi, o homem é a imagem da própria luta.

 

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