Roberto Gerin

Resenha Dois Perdidos numa Noite Suja Roberto Gerin

PERDIDOS ENTRE QUATRO PAREDES

Quando Plínio Marcos escreveu Dois Perdidos numa Noite Suja, em 1966, tinha ele já em seu currículo de dramaturgo uma trajetória de embates com a censura, com a qual teria que conviver ao longo dos 21 anos de produção literária sob o regime militar. Como ele mesmo confessa em uma de suas entrevistas, fora preso 18 vezes desde que estreara sua primeira peça, Barrela, em Santos, em 1º de novembro de 1959. Barrela subiria ao palco por apenas uma noite, já antecipadamente censurada. Navalha na Carne, 1967, talvez seja o símbolo maior desta luta. Vários artistas, entre eles Cacilda Becker, se envolveram na refrega para a liberação do texto, obrigando a que Tônia Carrero, que protagonizaria Neusa Suely, percorresse os gabinetes da ditadura para conseguir a permissão da montagem. E chegou a triste hora, ainda na década de sessenta, em que todos os textos de Plínio Marcos seriam engavetados pela censura. Diante de biografia tão conturbada, Plínio Marcos passou a se autodenominar o “autor maldito”. Era já conhecido, não só nos corredores da censura, também em algumas praças culturais, quando Dois Perdidos numa Noite Suja foi apresentado pela primeira vez, em 1966, no Bar Ponto de Encontro, na galeria Metrópole, em São Paulo, para uma pequena plateia, mas o suficiente para que o texto repercutisse além das fronteiras paulistas. Plínio se tornaria uma figura popular, e se estabelecia, com as obras escritas na década de sessenta, como um dos nossos grandes autores teatrais. Como diria Plínio Marcos, meio que jocosa meio que raivosamente, “sou o analfabeto mais premiado do país”. De fato, não gostava de estudar, cursara só o primário, mas ninguém melhor que ele soube levar para os palcos criaturas analfabetas, marginalizadas, seres invisíveis que transitaram com dignidade ímpar pela sua pungente dramaturgia. Por necessidade, vendia ele mesmo seus livros nas portas de bares e teatros. Não tinha vergonha de ser independente, amparado que estava pela profunda autoconsciência do papel de dramaturgo que ele representava. Plínio Marcos tinha fé no teatro como fonte primordial do verdadeiro grito.

Dois Perdidos numa Noite Suja traz a vida de Tonho e Paco, chapas que trabalham em um mercado onde carregam e descarregam caminhões, cujos ganhos, avulsos, mal dão para comer e dormir. Moram juntos num quarto de pensão barato, onde tudo é dividido, dores e esperanças. Neste recorte cotidiano, Plínio Marcos começa a estruturar seu texto, despejando em cortantes diálogos a história de dois párias que não enxergam saída para suas misérias. Ainda se apegam a algumas referências, no caso de Tonho, a de ter um par de sapatos novos para poder procurar emprego, e Paco, a de comprar uma flauta para substituir a que lhe fora roubada, fonte antiga de seus ganhos. Num posicionamento dramático eficiente, Plínio Marcos coloca-os no extremo do corredor, onde há apenas uma porta de saída. Porém, lacrada.

Plínio Marcos conhecia muito bem as microestruturas de poder que se estabeleciam cotidianamente entre essas pessoas invisíveis que vagavam pela noite em busca de um pouco de vida. Mesmo entre os miseráveis, sempre tem quem manda e quem obedece; quem subjuga e quem é subjugado; quem explora, e os que são explorados. É do humano, portanto, não tem nada a ver com outras estruturas de poder baseadas no dinheiro. E Plínio Marcos traz essas microestruturas na forma inteligente com que manipula os diálogos. A configuração das falas que predomina no texto, onde quem finaliza o jogo de disputa verbal é quem detém o poder, pode ser exemplificado na sequência Paco-Tonho-Paco. Já no segundo ato, quando Tonho, de posse do revólver, passa a dominar, a configuração se inverte e a última fala poderosa passa a ser de Tonho. Vamos a um exemplo na configuração Paco-Tonho-Paco. Paco começa. “Pensando morreu um burro”. “Que devia ser seu pai”. “Que dormia com sua mãe”. Neste instante, acuado pelo poder emanado do manejo verbal de Paco, levado ao extremo, quando não há mais ar para respirar, então Tonho recua, muda de assunto, geralmente buscando dentro de si um sentimento ruim, de derrota. Como se vê, o poder momentâneo está com quem dá o último golpe. Como no ringue. Quem está apanhando corre para as cordas. E Tonho o faz com certa frequência. Paco o domina, no gogó. Restará a Tonho o revólver para reverter o jogo.

A estrutura formal planejada por Plínio Marcos para dar fluxo à narrativa traz uma curiosidade. Foge um pouco ao padrão esquemático de atos e cenas. O texto se divide em dois atos, até aí tudo bem. Só que o primeiro ato, bem mais longo, é composto de cinco quadros, o que não ocorre com o segundo ato, que não apresenta qualquer tipo de divisão, transformando-se numa longa cena, sem interrupção de tempo e espaço. Como se Plínio Marcos reservasse uma sala especial para desenvolver a parte mais sensível e crucial do texto.

O primeiro quadro do ato um já começa com a apresentação do primeiro objeto que comporá o conflito da trama. A gaita. E começa em alto tom, com as agressões físicas do forte Tonho ao impertinente Paco que, a despeito dos reiterados pedidos de Tonho, não para de tocar a gaita. Mas o que importa é o segundo objeto, o mais importante deste texto teatral, que definirá a trama e impulsionará toda a tensão em direção a seu desfecho. É visível a preocupação de Plínio Marcos em construir, já nesta unidade, a armadilha dramática. O desenho da personalidade de Tonho é tosco e ao mesmo tempo nuclear. Está insatisfeito com seu emprego de chapa no mercado, é estudado e sonha com a possibilidade de arranjar um emprego melhor, em algum escritório. Só há um obstáculo. Ele não tem sapatos apresentáveis. Quem tem a posse de um par de sapatos bacana é Paco. E aqui Plínio Marcos habilmente introduz o limite no relacionamento entre os dois, o que permitirá a explosão vigorosa do conflito. Ao negar à relação entre os dois pobres coitados qualquer possibilidade de solidariedade, o autor dá fôlego à tragédia.

O segundo quadro começa novamente com a desavença em torno da gaita, mas logo abandonada para introduzir outra problemática, o Negrão, sujeito mal encarado, a quem Tonho teria tirado a vez no descarregamento de um caminhão. O assustador Negrão passou a cobrar de Tonho a metade do dinheiro recebido do dono do caminhão, e o recado, de forma manipulativa, é trazido por Paco. Neste quadro aparece a fala tão querida a Plínio Marcos, quando Paco diz. “Não força a paciência. Você nunca vai ser ninguém”. Plínio Marcos se sente impotente em inserir suas personagens no mundo visível, como cidadãos funcionais pertencentes a um meio capitalista produtivo. Sente-se tão impotente, vê tão pouca perspectiva, que prefere se ocupar do instante das personagens, daquilo que é essencial naquele momento, para não dar a elas a consciência de sua invisibilidade. E a frase acima, evidente, conduz a trama para o olho do conflito. Os sapatos de Paco são a única forma de Tonho ser alguém na vida. Esta é a saída, esta será sua obsessão, transformando o embate em torno dos sapatos no núcleo poderoso do texto. O conflito está entronizado. E finaliza o quadro com a ameaça do Negrão que, segundo palavras de Paco, quer “enrabar” Tonho. Com este verbo, Plínio Marcos introduz mais uma recorrente temática em sua dramaturgia. A posse do corpo do outro.

Neste terceiro quadro, Plínio Marcos estrutura a narrativa em torno de uma possível cafetinagem, nome usado nas quebradas do submundo, que é a exploração ou comércio carnal alheio. É ilegal, é crime. Relação de negócio comum no submundo de Plínio Marcos, onde toma formas desumanas, e onde a autoestima é totalmente destruída. As prostitutas surgem em seus textos como as principais vítimas desta mórbida relação, obrigadas que estão, em troca de proteção e afeto, a ceder parte do seu ganho a quem as protege. Esta relação surge como temática central em Navalha na Carne, com a subjugação humilhante de Neusa Suely a Vado, e chegará ao limite do absurdo em Abajur Lilás. E vai surgir ainda mais escancarado em seu romance Querô, uma Reportagem Maldita, só que desta vez estruturada na relação de bandidagem, e que serve de motivação existencial para preparar a tragédia, que é quando Querô, na busca de si mesmo, se recusa a se submeter à humilhação da posse pelo outro.

Em Dois Perdidos numa Noite Suja, a relação de posse não está no centro do conflito, serve apenas para fechar mais uma das portas de possibilidade de ganho. Para evitar o achaque do Negrão, Tonho evita ir ao mercado. Sem trabalho, a pressão de tomar atitude para ser alguém na vida aumenta. Mas Paco, numa linguagem muito precisa, parece enterrar de vez os sonhos de Tonho de “ser alguém”. Diz, em relação aos achaques do Negrão. “Não vai ser mole. Se antes de você trabalhar pra homem, não dava, agora então é que não dá mesmo”. E vai além, referindo-se a Tonho. “Seu apelido lá no mercado agora é Boneca do Negrão”. E incita-o a se livrar da triste condição. “Acho que você devia brigar com o Negrão”. Só que Tonho sabe que esse embate sem fim terminará em morte. E então Paco sela o destino. “Mata ele”.

Uma das armadilhas emocionais montada por Paco é atribuir a Tonho sentimentos (inveja, medo) e atitudes (covardia) que não são dele. É nesta vileza que Paco constrói o monstro que se voltará contra ele. Esta é a dinâmica propulsora da tragédia. Na verdade, eis a clareza. Tonho não tem inveja dos sapatos de Paco, tem vergonha dos seus, rotos. E aqui Plínio Marcos introduz o terceiro objeto da trama, o revólver, que elevará a tensão e a expectativa para outro patamar, sublimando a derrota na tragédia.

No quarto quadro, aprofunda-se a consciência do nada ser, em que se vive em um mundo onde cada um é por si e não há ninguém a quem recorrer. Diante deste sentimento de estar no fundo do poço é que nasce a utilidade do revólver. “Um assalto?”, pergunta Paco. “É. Um assalto.”, responde Tonho. Interessante perceber que ao ser acuado por Paco, nasce em Tonho o dilema da maldade. E Tonho está consciente do seu passo. “Não gosto disso. Só vou entrar nessa porque não vejo outro jeito de me arrumar”. E logo se percebe. Mesmo entrando na onda do crime, há limites morais, como, por exemplo, o estupro, ação sugerida por Paco. Assim Tonho se expressa. “Eu nunca vou agarrar mulher à força”. O caráter de Tonho é, de certo modo, preservado, empurrado para o crime apenas em função da necessidade de ter um par de sapatos. Seu desejo é apenas encerrar este impasse em sua vida. Uma vez que não pode aparecer no mercado sob pena de ser achacado pelo Negrão, o que lhe resta? E assim está inoculada em Tonho a ideia inevitável do roubo.

Neste quinto quadro, para convencer de vez Tonho a entrar na onda do assalto, Paco usa de sua principal arma, a manipulação de fatos reais. Ele está doido para assaltar, só que disfarça, jogando, em mais uma de suas artimanhas, este desejo no colo de Tonho, fragilizado ao se encontrar em situação extrema. Paco espertamente fecha seu universo de possibilidades para uma única saída, o assalto. Assim diz para Tonho, quando este sugere que ele vá sozinho. “Mas você que está a perigo. O Negrão não te esquece”. E o fato relevante momentâneo na relação dos dois é que Paco, estrategicamente, se submete ao mando de Tonho para conseguir convencê-lo da empreitada. Aceita as condições de Tonho. Tonho, sentindo-se seguro, no comando, cai na armadilha do esperto Paco. E assim partem para a aventura, gerando o imbróglio dramático de que se ocupará o segundo ato.

O segundo ato começa em alta voltagem, quando as personagens retornam do assalto a um casal, no parque, e estão com a adrenalina a toda. E é este cenário emocional que faz com que as personagens, antes já pinceladas, agora se revelem em toda sua crueza. E função. Enquanto Paco eleva o tom, sentindo-se o maioral, tratando-se como “Paco Maluco, o Perigoso”, Tonho se rebela contra a tirania verbal e as atitudes imorais do companheiro. Já se percebe a transformação. É como se agora, ao assaltar, o interior ficasse definitivamente para trás, com seu romantismo e suas complacências. O Tonho está pronto para dar o salto definitivo. Mas ainda reage à ideia de ingressar na criminalidade. Diz. “Eu quero ser como todo mundo, ter um emprego de gente, trabalhar”. É seu último suspiro.

Até que se chegue ao desfecho, há o lance espetacular da dramaturgia de Plínio Marcos que, com certeza, respirava, àquela época, os fortes ventos do existencialismo, ao feitio de O Estrangeiro, de Albert Camus. Tonho arriscara seus princípios morais em um assalto tão somente para ter um par de sapatos decente para calçar e assim buscar um emprego condizente com seu nível de rapaz estudado. Só que ele descobre que os pés do rapaz de quem roubara os sapatos eram menores que os seus. Não havia atentado para esta possibilidade. Os sapatos roubados não lhe serviam! Volta assim à estaca zero. Confrontado pelas últimas provocações de Paco, levadas ao extremo, Tonho então pega o revólver e aponta. Vê então a valentia de Paco Maluco se esfumar na covardia do medo, possibilitando que Tonho, no comando total, se apodere da linguagem de Paco. Este é o belo efeito da transformação que Plínio Marcos nos oferece. É com esta linguagem, que se configura no título que Paco havia se atribuído, que Tonho dá vazão, de vez, à mudança. Agora ele é o “Tonho Maluco, o Perigoso”. Nada mais existencial.

Antes de finalizar, façamos aqui um pequeno parágrafo para um breve parêntesis. Vale observar que, apesar do poderio manipulativo de Paco, que o coloca em vantagem sobre Tonho, é ele, Paco, quem está preso emocionalmente ao outro. Não o contrário, como poderia parecer. E aqui reside, digamos, a burrice de Paco. Não tendo consciência desta prisão emocional, mas tentando intuitivamente se libertar dela, ele passa, detentor de um inteligência verbal irresistível, a tripudiar seu algoz, do qual, como ficará evidente, não consegue se libertar. Paco vê em Tonho um sonho humano para si próprio. Sem o perceber, querendo destruir sua imagem de sonho, Paco aciona a dialética da tragédia. Esta eficiente construção dramatúrgica de Plínio Marcos é que vai possibilitar a transformação pessoal de Tonho. E dar o desfecho pretendido pelo autor.

Como conclusão, vamos aqui construir uma alegoria. Supor que Tonho, chegado do interior, ainda impregnado de inocência e romantismo, seja uma bela escultura em madeira. Paco, um ser desprezível, sem pai nem origem, inteligente e descolado, perspicaz e manipulador, diante desta singela figura esculpida em madeira, se propõe a destruí-la. Para isso, transforma-se em cupim. E vorazmente vai comendo a madeira e aos poucos desfigurando a imagem. É neste ritmo dramático, em que a cada fala brutal de Paco um pedacinho da madeira se decompõe, que o texto vai se configurando como uma alegoria da transformação. Ao chegar ao fim, a bela imagem já não mais existe. Em seu lugar há uma outra, maldosamente esculpida por Paco. Mas, como um doutor Frankenstein, Paco também é consumido pela própria obra. Esta é a essência magnífica do texto de Plínio Marcos.

 

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