O parque das irmãs magníficas
A LITERATURA COMO COMPANHEIRA
Para definir o romance de Camila Sosa Villada, O PARQUE DAS IRMÃS MAGNÍFICAS, 206 pg., Ed. PLANETA, podemos nos servir do adjetivo que qualifica, no título, as personagens da trama: magnífico. Ninguém, seguindo sua história pessoal, poderia ser mais autorizado a escrever sobre a realidade das travestis senão a própria Camila. Sua voz terrivelmente límpida, e ao mesmo tempo lúdica, apropriando-se de uma linguagem dançante, desprovida de elementos depressivos, torna-se a ferramenta ideal para tratar de temática tão delicada quanto merecedora de atenção. São inúmeras as histórias de travestis que circulam de forma invisível pelas ruas das cidades e se tornam visíveis apenas nos noticiários, quando seus corpos, estirados ao chão, tornam-se alvo de curiosidade, jamais de horror.
O romance é narrado na primeira pessoa, fazendo da narradora a testemunha onipresente de cada vivência tirada da cumplicidade de mulheres desprotegidas que encontram nas companheiras seu ponto de equilíbrio. Afinal, é preciso sobreviver noite afora para chegar ao dia seguinte. Mesmo sabendo que nem sempre se tem a certeza de que o próximo sol brilhará.
Confiantes, caminham em direção a O Parque das Irmãs Magníficas, sabendo que lá as espera mais uma noite de incertezas.
O palco glamouroso da narrativa é um parque (O Parque das Irmãs Magníficas) — único lugar seguro onde elas podem ser procuradas para vender prazeres (alguns realmente prazerosos, outros sulcados pela navalha do medo). No entanto, a protagonista do romance é a própria vida, com sua nobre missão de representar seres que teimam em viver em um mundo que os afasta do convívio dito “normal” da sociedade. As travestis agem com a certeza de que levarão para a sepultura suas carnes machucadas pela dor da rejeição e do abandono. No cotidiano, não passam de imagens anônimas que se impregnam dessas dores, assumindo corajosamente o destino que lhes é imposto. Quando é chegada a hora, caminham confiantes em direção ao Parque das Irmãs Magníficas, sabendo que lá as espera mais uma noite de incertezas.
Um fenômeno que está ocorrendo no mundo, e não poderia ser diferente nas artes, em específico na literatura, é o poder das vozes das minorias querendo se fazer ouvidas. E, talvez, nos parece, a literatura seja o porto de salvação encontrado por Camila como forma de construir para si parâmetros sociais de vida digna. E, por que não, vida saborosa. Nessa busca, Camila Sosa Villada acaba encontrando dentro de si o talento germinal que a levou, como escritora, a alçar voos seguros para fora de si e de seus esconderijos. Foi para o mundo para ser aplaudida.
O que é narrado em O Parque das Irmãs Magníficas absolutamente não pertence à ficção.
Pode-se falar em redenção para a protagonista? Mas… redenção do quê? De um direito que sempre foi seu, o de viver? Será que é preciso proclamar que a vida plena está disponível para todas e para todos? Falamos aqui de atos heroicos. Pois, mesmo sabendo das dificuldades em encontrar forças para ir adiante, há sempre a luta cotidiana para afastar dos caminhos os infortúnios. É assim que a autora constrói um heroísmo para suas personagens. Mas é um heroísmo que passa longe das ilusões glamorizadas. O que é narrado em O Parque das Irmãs Magníficas absolutamente não pertence à ficção.
Outra característica a ser ressaltada na literatura de Camila Sosa Villada é sua proximidade, diria promíscua, com a literatura sul-americana. É a linguagem que se constrói por meio de mundos puramente pessoais, de fluidez encantatória, onde a carne transita à frente da alma, abrindo caminho para que esta se reproduza em cada contato com a magia da linguagem.
O Parque das Irmãs Magníficas se transforma, para o leitor desavisado, numa surpresa.
E uma das reconhecidas forças dessa literatura fantástica são as imagens que brincam com cada palavra escrita. São elas, as imagens, que fazem as palavras alçarem voos para além da realidade vivida. Haja vista a personagem María, a Muda, transformada em pássaro para se fazer poeticamente indefesa e ao mesmo tempo liberta de seu inegociável destino. Há também a incansável Encarna (nome carregado de imagens), mulher que chegará perto de completar quase duzentos anos de vida, acumulando paciência e sabedoria. Camila se apodera dessa imagética para confirmar a ousadia do seu estilo, reafirmando o inconformismo de linguagem tão típica da nossa literatura sul-americana, e fortemente arraigada na literatura de língua hispânica. Camila Sosa torna-se uma expoente dessa tradição.
Em suma. O Parque das Irmãs Magníficas se transforma, para o leitor desavisado, numa surpresa. Ele é convidado, sem chances de recusar, a fazer parte das dinâmicas cotidianas das travestis que têm a capacidade malabarística de esconder os sofrimentos nas alegrias. Talvez esta seja a grande solução humana à disposição das personagens de Camila Sosa. São, acima de tudo, seres que transitam pela invisibilidade como forma de transformar suas vidas em uma grande festa. E isso só é possível porque a tragédia já está anunciada.
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