Roberto Gerin

Jade tem sua forma bem pessoal de mostrar afeto. À medida que foi crescendo, desenvolveu uma maturidade peculiar de pedir e dar carinho. E o beijo é o grau máximo da entrega. E tem sua hora para se manifestar. Quando está insegura, o beijo a acalenta. Quando ansiosa, o beijo a protege. Se carente, o beijo a preenche. Fora desta linha emocional, Jade se apresenta tão dengosa quanto arredia. Quer o carinho, mas sem a entrega. Esta característica de comportamento é mais visível na sua relação com minha mãe, com quem estabeleceu uma aproximação de respeito e distância, amor e reserva. Em relação a mim, Jade construiu um outro roteiro afetivo. Há mais entrega, menos reserva. Há mais confiança e menos medo. Permito que ela me tenha o tempo que deseja, sem ir além do que não queremos. A convivência nos ensinou os limites. Jade passou a respeitar a minha individualidade, distanciando-se daquela Jade abusiva dos primeiros tempos. Jade agora é moça, na flor de sua idade de esplendor e sonhos. Tem outros interesses. Outro ritmo. Para se constituir como indivíduo, ela se enclausurou numa personalidade independente, e às vezes soberba. Mas é ainda afetivamente frágil.

Esta fragilidade ficou clara ontem à noite. Mamãe já estava pronta para dormir, assistia a um filme na televisão. A seu lado, o inflexível Totó, guardando seu espaço com o costumeiro mau humor. No entanto, permite que Jade venha buscar seus momentos de carinho junto à minha mãe. Não há como impedi-la. Jade se deita do outro lado, fora do alcance do Totó. Esparrama-se sobre o ombro esquerdo da minha mãe e ali fica por apenas alguns minutos, recebendo lentamente os carinhos…! Os pelos eriçados denunciam sua satisfação. Dengosa, entrega-se. É seu momento sublime. Depois, saciada, se retira. Ontem, coisa rara, levada por um destes momentos especiais, de supremo afeto, Jade beijou minha mãe antes de se retirar. Minha mãe, talvez distraída, não que tenha rejeitado o beijo, apenas reagiu, por reflexo, ao gesto inusitado. Jade se assustou e sumiu pela porta. Não deu sequer tempo de minha mãe se explicar.

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Esta manhã pusemos o Totó para tomar banho. Por causa da pandemia, buscam e trazem. O interfone tocou, era o porteiro pedindo para eu descer. Haviam acabado de chegar com o Totó. Mas não era o Totó! Era outro cachorro, raça maior, pelo marrom, focinho alongado. Minha mãe tentou explicar o engano para a secretária da loja, que  teimava em dizer que o rapaz tinha ido entregar o Totó, sim! E não havia ninguém em casa. Como não ter ninguém! Em tempos de pandemia?! Vocês mandaram outro cachorro, minha senhora! Minha mãe se irritava. Enfim, trouxeram o Totó, meu cãozinho maltês, o algodãozinho. Desci para pegá-lo, encontrei-o emburrado. Passaram-lhe a máquina zero! Tosquiaram o Totó! De leão majestoso transformaram-no em um pobre ratinho! Ele estava simplesmente enfurecido.

Confundiram, tosaram o cachorro errado. Pediram desculpas, mas as desculpas não consolaram o Totó. Se macambúzio por natureza, lorde carrancudo, esnobe, agora tosado à máquina zero! E fungava! E se irritava! E suspirava! Pobre Totó! Perdia sua majestade de puro cão maltês!

Um nada. Um pária. E ainda ter que aturar as brincadeiras…! Os risinhos…! Tão miúdo sem a exuberância do pelo…! Encantoou-se junto à cortina da sala, onde se esconde toda vez que precisa ruminar seu mau humor. Deixamo-lo a sós, lá, quieto, se recuperando de sua decepção. Quase à noite, sai do seu canto para tomar água. Caminha, cabisbaixo, arrasado. Com seus olhinhos de menino desamparado, pede à minha mãe que o coloque na cama. Aninhou-se ao lado dela, ali ficou, quieto e sorumbático. Yoda apareceu. Olhava-o com estranheza. Era visível seu espanto. E Totó se envergonhava. Não queria a presença do Yoda. Não se tratava de querer defender seu território. Apenas não queria que o Yoda o visse naquele triste e vergonhoso estado.

Em seguida apareceu Jade. Era certo que ainda não se recuperara do sentimento de rejeição pelo que havia acontecido ontem à noite. Ignorou minha mãe. Subiu na cama, deu a volta pela cabeceira, aproximou-se de Totó e beijou-o. Três vezes. Totó não reagiu. Seu corpo ficou corado, a emoção da vergonha deixara-o paralisado. Depois Jade pulou da cama para o chão, atravessou a porta e foi embora. Totó, surpreso, levantou a cabeça e ficou olhando Jade se afastar. Estava sensivelmente perturbado. Não esperava, nunca, o beijo.

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