A GATA OBSERVADORA
Hoje aqui em casa a coisa pegou. Totó foi além dos limites. Chateado com mamãe que não o pegou no colo quando ele pediu, não deixou por menos. Fez xixi na cama dela, bem quase em cima do travesseiro. Ali, onde ela deposita a cabeça pra dormir. Foi um Deus nos acuda quando minha mãe descobriu. Totó se resignou às broncas, encolheu-se em seu canto, atrás do sofá, protegido pela cortina. Esse é o Totó, movido por pequenas vinganças, numa atitude mais que instintiva de lidar com a dor da rejeição. Como castigo, perdeu as regalias de cachorro mimado. A cama, o colo, as atenções. Foi reduzido a cão.
Jade sente o clima pesado, vaga pela casa tentando entender o que acontece. Acompanhada do Yoda, foram prestar solidariedade ao Totó, que desprezou grosseiramente (rosnou) o gesto. Virou para a parede, junto ao sofá, e ali passou o anoitecer, a noite e parte do dia seguinte. Assustara-se com as decisões da mamãe. Não imaginava receber tamanho castigo. Mamãe recolheu tudo, edredom, colcha, fronha, colocou no carro e levou para a lavanderia. Foi a primeira vez que Totó usou de forma tão acintosa o seu poder letal. E deixou claro. Um xixi não é apenas um xixi!
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Entendo que a reação do Totó foi um pouco além da curva. Mas previsível. Cachorro — qualquer animal — tem memória, mesmo que instintiva. Ele pode muito bem gravar seus pequenos rancores numa caixa preta, e depois, em algum momento, por algum motivo, abri-la em forma de xixi. É esta ação natural que o faz se aproximar tanto de nós!
Os ciúmes do Totó se concentram mais em Yoda que em Jade. E Totó mapeia tudo. Cada movimento afetivo. Ele sabe como cada um, Jade e Yoda, se comportam em relação a mim e à mamãe.
Jade tornou-se minha companheira, convivemos pacificamente, condicionadas (por mim) que fomos em lidar com as particularidades de cada uma de nós. Para os animais, ter sua individualidade respeitada é um pressuposto de convívio afetivo tranquilo. Afinal, na relação com animais, o afeto é a principal moeda em circulação. De valor inestimável, pode alimentar sentimentos (ou instinto) e conquistar amores eternos.
Yoda, por sua vez, pendeu para o lado da mamãe. Me ama, me visita, mas quando mamãe está livre do seu trabalho, é pra ela que ele dirige seus pedidos de carinho. E o primeiro movimento, quando mamãe sai da biblioteca, é correr para a cozinha, subir na bancada de granito e esperar que mamãe lhe abra a torneira para ele finalmente tomar água. Raramente usa o pote. Este é apenas um código, a senha para se espichar à espera dos carinhos. Que mamãe lhe oferece à farta, abduzida pela extrema simpatia (e solicitude) do Yoda. E aqui nascem os ciúmes.
Não bastasse, Yoda invade o território do Totó. Come da sua comida, brinca com suas bolinhas de plástico, ocupa os melhores espaços da cama da mamãe, e não dá sinais de se intimidar com o mau humor do imperador Totó. Em momentos de extrema tensão, o minúsculo ciumento se engrandece e parte pra cima do rival. Yoda, sem susto, com a precisão do salto, se livra do ataque. Mas não arreda pé da cama! O que deixa Totó enfurecido. Trava uma luta inglória! Seus limitados movimentos de cão miúdo o colocam em desvantagem. Totó não disfarça seu ódio, Totó não disfarça seu descontentamento. E não disfarça as suas frustrações de se ver dominado por um gato.
E aqui reside a causa de tudo. A mágoa escoa pelo xixi. Às vezes, Totó espera por horas deitado à porta envidraçada da biblioteca, controlando os movimentos da minha mãe, já prevendo a hora em que ela vai se levantar da cadeira. E neste dia ela se levantou, puxou a porta de correr da biblioteca, não deu pela presença do Totó e foi direto para a cozinha, onde o Yoda já a esperava. E Totó ficou a meio caminho do corredor, observando a sessão de carinhos e chamegos entre minha mãe e o Yoda. O rosto contraído, o focinho inquieto e os olhos mortiços, condenados à mais profunda solidão. Ele não se mexia, mas seu corpo denunciava o avassalador sentimento de ciúme, a sensação de impotência diante daquele cruel quadro de afeto abundante!
Esnobe, sistemático e controlador, eis o Totó. E eis a razão por que tive tantas dificuldades em lidar no dia a dia com ele. Como me ajustar às suas manias de conviver a conta gotas? De particularizar o afeto? No colo da minha mãe, me rejeita. No meu colo, rejeita minha mãe. No colo da Ana, rejeita a mim e a minha mãe! Da Amanda, rejeita a nós três! E quando a Jade chegou, ele trocou de vez o meu quarto pelo quarto da minha mãe. Apoderou-se da cama dela como se fosse o paraíso perdido! Tornou seu território, renunciou à vida.
Jade, que entrara pela janela da sala, pulara para o chão e, posicionando-se ao canto, no fim do corredor, pôde muito bem observar a triste cena. E, lógico, compreendeu a dinâmica, lançando olhares ternos para o Totó, que absolutamente nada percebeu. Parado ao meio do corredor, estava fixo, raivosamente fixo na cena de afeto que acontecia sobre a bancada. Vencido pela tristeza, Totó mudou o comportamento. Pediu colo, seu corpo soerguido, a senha que mamãe tão bem conhece. Mas ela desconsiderou. E neste momento de suprema dor, Totó arquitetaria seu macabro plano. Nunca antes havia feito xixi na cama da minha mãe.
Mais tarde, aproximando-se do anoitecer, por insistência, mamãe colocou Totó na cama dela. Isto nos faz crer que quando mamãe o colocou na cama, ele já estava de caso pensado. Tanto que Jade percebera o movimento. Ela foi até o quarto, pulou sobre a cama e se aproximou do Totó. Exatamente não se sabe o que Jade pretendia, mas é bem certo que viera para prestar solidariedade. Ele se afastou, posicionou-se sobre o travesseiro da mamãe e fez o xixi, encarando a Jade. Queria encarar a mamãe, na falta dela, encarou a Jade. E Jade compreendeu tudo. Não devemos ficar calados com nossas dores. No entanto, resta-nos saber como gritá-las! No caso do Totó, utilizou-se de sua maldade secreta para se vingar. Jade, que a tudo observava, compreendeu que era hora de se retirar do local do crime.
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