A GATA RESSENTIDA
Jade tem sim uma personalidade delicada. Apenas uma camada muita fina, tênue, protege seus sentimentos. Qualquer coisa que se lhe faça ou se lhe diga tem uma ressonância amplificada em seu íntimo. Compreende a vida à sua maneira, independente de como é feita a realidade, com suas dinâmicas próprias de acolhimento e rejeição. Esta forma de encarar a vida sempre nos leva a sofrimentos que poderiam ser evitados. E o ressentimento é uma dessas pesadas cargas, como se fosse um saco de pedras que carregamos inutilmente vida afora. Sempre acontece de percebermos a inutilidade deste peso, e imediatamente o tiramos de nossas costas. Muitas das vezes, no entanto, passamos vida afora colecionando pedras que só a nós causam danos. Jade, eu tenho percebido, é afeita a estas pequenas mágoas que se acumulam e alteram seu comportamento. Foi exatamente o que aconteceu três dias atrás, quando Jade foi ao quarto de minha mãe procurar aqueles momentos de carinho bem do jeito dela. Deita-se ao lado da minha mãe, aninha-se em seu ombro e ali fica recebendo o afeto. Depois se levanta, pula para o chão e atravessa a porta, saciada.
Já narrei este pequeno fato cotidiano em outra ocasião, quando Jade vai além na sua entrega afetiva e, grata pelos carinhos de minha mãe, levanta a cabeça, estica-se e tenta beijá-la. Só que minha mãe, instintivamente, surpreendida, reage. Inicia-se então a via crúcis de mágoas que se arrastam por vários dias. Jade se ressentiu. Visivelmente mudou suas atitudes em relação à minha mãe. Passou a evitá-la. Deixou de ir a seu quarto pedir sua cotidiana dose de carinho. Tornou-se arredia, distante, o andar pesado, alheia ao mundo. Sofria.
Minha mãe percebeu o estrago afetivo e tentou reconquistar a confiança de Jade com todo tipo de mimos e carinhos que estavam a seu alcance. Chamava-a de Jadeca, carregando a voz de afeto e simpatia. Tentava pegá-la no colo, até permitiu que ela subisse na bancada de mármore, espaço proibido, para evitar os previsíveis roubos de alimentos. Mas nada que minha mãe fizesse tirava Jade de sua letargia.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.
Com esta situação de dor que se prolongava, Jade acabou se aproximando ainda mais de mim. Acomodou-se em minha cama, raramente saía para seus costumeiros passeios. Era afetiva, me olhava longa e tristemente, observava meus estudos, deitava-se no pé da cama, me observando tocar violão, embalada por pensamentos que me escapavam à compreensão. Talvez eu nunca tenha visto Jade tão abatida, presa a esse triste rosário de mágoas que se cristalizam em ressentimentos e nos aprisionam em um estado de espírito estranho à nossa natureza. É como se você internamente estivesse se violentando, dirigindo a agressão para si mesmo, num ato pessoal de covardia. Como fazer Jade entender aonde ela acabou indo? Como mostrar-lhe que a dor pode ter um fim, desde que a entendamos? Como mostrar-lhe que a realidade não se molda ao nosso modo de ser, e que cabe a nós nos adaptarmos internamente às demandas, boas e ruins, da vida? Que não há um quadro perfeito pendurado na parede contendo uma lista de regras ditando felicidades garantidas? Dava-lhe carinho, acolhia a sua dor, mas me incomodava sua incompreensão em relação a um fato tão corriqueiro.
Em dado momento, parei de tocar violão, peguei a Jade no colo e fui até o quarto da minha mãe. Deitei-me ao lado dela, pus a Jade entre nós, com a intenção de forçar a reconciliação. Não resolveu. Jade escapou na primeira oportunidade. Fui encontrá-la debaixo da minha cama, sem, no entanto, subir para o seu esconderijo. Só me faltava esta agora. Ficar magoada também comigo.
Esta luta de reconquista perdurou por vários dias, com pequenas variações de humor. Às vezes eu podia ver Jade pulando para a janela, correndo para a sala, depois via Jade miando alto, no seu jeito irritado de chamar o sonso do Yoda para as brincadeiras. Até o dia em que ela foi se tornando mais leve, voltando à sua forma natural de ser. Isto me deixou mais tranquila. Mas nada de ir ao quarto da minha mãe. Mantinha-se irredutível.
Nada melhor do que um dia após o outro! Ontem à noite estava eu em meu quarto, minha mãe entrou, sentou-se à beira da cama e nos pusemos a conversar. Jade aninhara-se ao lado do Yoda, na cabeceira da cama, no cantinho, o mais longe possível da minha mãe. Seu comportamento arredio estava claro. No entanto, observava a tudo com curiosidade. E ouvia-se o latido do Totó, deitado na cama da minha mãe, resmungando, exigindo que ela voltasse para o quarto. Sabia o que estava acontecendo no meu quarto, não se conformava de não estar participando. Posso imaginar o Totó pouco a pouco ficando emburrado, o focinho deitado sobre as patas, o olhar cabisbaixo, esperando o fim do mundo. Totó é mandão, dá ordens, não tolera perder a majestade. Também tem ele seus momentos de ressentimento, que curte escondido atrás da cortina da sala. Mas, diferente de Jade, Totó não tem a autonomia da autoestima. Ao mesmo tempo em que ordena, imediatamente depois obedece. Seus ressentimentos não duram mais que algumas horas. E na maioria das vezes mais me parece um jogo de poder. Finge-se de brabo para se sentir maior do que é!
Aproveitei para contar à minha mãe a minha ideia de futuro. Uma ideia simples, um plano normal de vida. Havia planejado com minha melhor amiga que assim que fizéssemos dezoito anos, iríamos morar juntas. Estudaríamos e moraríamos perto da universidade, numa vida só nossa, independente. Enfim, ideais de adolescência, pedaços de sonhos necessários para irmos formando uma realidade futura. No entanto, minha mãe se ressentiu profundamente com a conversa! Um sentimento de abandono tomou conta dela. Calou-se e me olhou longamente. E seu íntimo se agitava, era visível. Havia ali uma mistura incompreensível de rejeição e vazio, cuja explosão estava pronta para se transformar em lágrimas de adeus. Levantou-se, após disfarçar seus sentimentos em leves brincadeiras, e retirou-se para o seu quarto. E assim terminamos a noite.
Hoje aconteceu o inesperado. Jade condoera-se, tomara para si as dores da minha mãe! Logo pela manhã, foi até o quarto dela, subiu na cama e deitou-se a seus pés. Sem o carinho, mas trazia forte o afeto da sua presença e da sua cumplicidade. Partilhava da dor da minha mãe. Observou minha mãe se levantar, arrumar a cama e ir cumprir sua rotina de trabalho. Lá Jade ficou, na cama — o dia inteiro! —, no sagrado altar do sacrifício, dando seu testemunho de compreensão de uma dor que ela tão bem conhecia. É bem provável que se tivesse um pouquinho mais de coragem, teria beijado minha mãe. Um dia eu sei que ela fará isso. Jogará fora as dores desnecessárias.
Clique abaixo para ler toda a sequência dos contos da gata JADE.
- A gata abusiva
- A gata triste
- A gata fujona
- A gata suspeita
- A gata beijoqueira
- A gata esperta
- A gata observadora