Roberto Gerin

Eis o mal de se ter mais de um gato em casa. Saber quem quebrou o vaso de flor. Saber quem derrubou o copo que estava em cima da pia. Quem rasgou a cortina… Arranhou o sofá. Quem sumiu com o parafuso… Não são acidentes banais. Trazem algum transtorno. Principalmente quando você acorda e vê que o rolo de papel toalha deixado sobre a bancada de mármore foi todo picotado! Coloquei Jade e Yoda juntos, à minha frente, e os observei. Óbvio que disfarçavam. Óbvio que sabiam o que tinham feito. Posavam de desentendidos. A alma ainda impura de Yoda ao lado da alma solene de Jade. Yoda me encarava, assustado. Jade desviava o olhar. Quem fez o quê?

Aconteceu ontem à noite de minha mãe esquecer o papel toalha sobre a bancada. E hoje pela manhã deparamo-nos com o ocorrido. Alguém, (Yoda e Jade), não sabemos a que horas, provável madrugada, simplesmente picotou todo o rolo de papel! O que se viu foram flocos brancos espalhados pela casa. Sala, sofás, mesinha, flores, abajur, tapetes, sobre a bancada, chão da cozinha, até em cima da máquina de lavar roupa! Enfim, uma festa. Como se densos flocos de neve tivessem caído para dentro da nossa casa, em um dia de noite enluarada, sob ameno calor de outono. Yoda, seu pilantra! E você, Jade, não adianta disfarçar!

Jade caminha com o silêncio de uma tigresa atravessando lentamente o prado em busca de comida. Carrega consigo uma espécie de autonomia, escondendo-se na densidade de uma sombra. Verdadeiro andar de uma gata elegante e ciente do seu poder de seduzir afeto e admiração. Parece alheia, caminhando dentro de si. Mas sabemos que por trás dessa indiferença esconde um par de orelhas bem atentas. Volta-se para o ruído, lenta, mas intensamente curiosa. Se Totó se aproxima para quebrar o sossego, despreza-lhe acintosamente os latidos. Mas não deixa de perceber sua presença, rastrear seus movimentos. Assim é Jade. Perspicaz, apenas finge se mostrar incapaz de produzir uma ideia travessa. Com sua alma inquieta, quem nos garante que o rolo de papel não tenha despertado nela o desejo de se divertir?

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Yoda é um lagarto desajeitado. E também uma peça de fliperama. Que se joga com imprudência contra o próximo obstáculo. Com suas patas de leopardo, guiado por uma bússola desgovernada, Yoda segue adiante, até chegar aparentemente aonde ele sequer pretendia chegar. Precipitado, se descobre na vontade colocada na ação, nunca na intenção! Cabe-lhe, se foi dele a ideia de despedaçar o rolo de papel, o bônus da infantil irresponsabilidade. Moleque, ainda guarda nos gestos a ansiedade do aprendizado. Só a vida nos ensina a harmonia, Yoda! A não ser que, desde nascença, traga consigo a elegância, fruto maduro do equilíbrio desejado. Esta sorte coube a Jade, não a você, na desengonçada graça de seus movimentos. Pois, diferente de Jade, Yoda não tem a espiritualidade do começo, meio e fim. As três etapas se misturam tresloucadamente na direção do próximo alvo, que só começa a existir quando entra em seu campo de visão. Terá sido ele o primeiro a encontrar o rolo de papel sobre a bancada?

Vi-me obrigada a ajudar minha mãe na limpeza da bagunça — afinal, os gatos são meus! Limpeza leve, mas chata. Feito penas jogadas ao vento, sempre descobríamos um floco branco escondido em algum lugar. Quando terminamos a limpeza, minha mãe tirou carne vermelha para descongelar, depois se trancou na biblioteca, onde passa boa parte da manhã em seus trabalhos à distância. Por volta de meio dia, hora de fazer o almoço, foi pra cozinha. A carne tinha desaparecido.

Sem a carne, minha mãe preparou uma macarronada. Estávamos comendo, quando o Yoda aparece na janela da sala, vindo do meu quarto pelo lado de fora, escorando-se na tela de proteção. E vimos o moleque, sem se preocupar em disfarçar, atravessar o encosto do sofá e pular para a poltrona de tecido colorido ao canto da sala. A poltrona, para evitar a poeira, minha mãe a deixa voltada para a parede. E logo em seguida, Jade! Percebemos sua cabeça arredia apontar no canto da janela. Desatenta, óbvio estudava o ambiente. Tive o pressentimento. Me aproximo e vejo Yoda, sobre a poltrona, comendo a carne.

Acuado pelos impropérios, Yoda fez-se de sonso. E Jade sumiu. Fui encontrá-la escondida na base da minha cama box, por dentro do tecido, sempre seu esconderijo quando as coisas não vão bem pro seu lado. Chamei, não atendia. Silenciava, emudecia. Passou ali a tarde toda, saiu pra tomar água e desapareceu novamente. Provável, em alguma gaveta do armário. Eu estava fechando os olhos pra dormir, passava de meia noite, percebi quando Jade saiu do esconderijo, saltou sobre a minha mesa de estudo, alcançou a janela e lentamente foi percorrendo o peitoril em direção à sala. Levantei-me e caminhei pelo corredor. Apontei apenas a cabeça, no momento de ver Jade percorrer o encosto do sofá, pular para a poltrona colorida e daí para o chão. Agachei-me. No canto, junto ao pé do sofá, Jade mastigava um pequeno pedaço de carne.

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