Roberto Gerin

Resenha A Grande Testemunha, por Roberto Gerin

SOMOS CONDENADOS A VIVER

Ao trazer para discussão esse clássico do cinema — uma das obras-primas de Robert Bresson —, A GRANDE TESTEMUNHA (96’), estamos, na verdade, colocando um desafio para o espectador. É um filme que, à primeira vista, causa certo estranhamento quando se percebe que o protagonista é um silencioso e sofrido burro. Ele é a presença quase onipresente, que a tudo testemunha. Apesar da inusitada personagem, a obra de Bresson alcança uma voz poética que transita silenciosamente entre o místico e a dura realidade. Vale a pena conferir, principalmente para quem gosta de se aventurar em experiências cinematográficas com uma pegada diferente. E é preciso lembrar. A Grande Testemunha é em preto e branco, produção francesa de 1966. Enfim, um filme que tem tudo para incomodar e encantar.

Nosso primeiro impacto é reagir à maneira como lidam com o pobre animal.

O filme narra a trajetória do burro Balthazar. Um burro, cuja vida, desde seu nascimento até sua morte, nos é mostrada a partir de sua convivência com os humanos. Ao passar de um para outro dono, vamos presenciando (testemunhando) a vida dessas pessoas que circulam em torno do animal. Nesse sentido, a narrativa segue os passos do burro. Para onde ele vai, a câmera vai atrás.

Nosso primeiro impacto é reagir à maneira como lidam com o pobre animal, submetendo-o a tratamentos desumanos, impensáveis nos dias de hoje. E o desfecho não poderia ser diferente. Robert Bresson presta uma homenagem a seu protagonista, reservando-lhe uma morte bucolicamente sublime.

Mas a onipresença do burro como peça-chave da trama não é a única causa do estranhamento. A estética adotada por Robert Bresson obriga o espectador a se movimentar internamente, agindo como cúmplice dos acontecimentos. É que o diretor revela o mínimo, em imagens aparentemente aleatórias, cabendo ao espectador preencher as lacunas, para não perder o sentido geral da narrativa. É como se Bresson saísse por aí filmando a esmo pedaços de cenas (realidades), com o único objetivo de alfinetar a sensibilidade do espectador.

Essa atitude de perenidade empresta ao filme A Grande Testemunha um caráter puramente universal.

Em A Grande Testemunha, não há emoções, não há rompantes, não há linguagem corporal para nos transmitir o que as personagens estão sentindo e pensando. Aliás, não interessa o que sentem e pensam. Elas não reagem, apenas agem. São títeres que transitam pelo cotidiano, impulsionados por motivações silenciosas. Até os diálogos são dispensáveis, como se não houvesse a necessidade da expressão oral como fonte de compreensão. O que interessa é a relação direta do espectador com a cena. Como se estivéssemos diante de um filme mudo.

Indo um pouco mais adiante na nossa percepção, é como se cada cena precisasse ser interpretada individualmente, já que não há, para a maioria delas, referenciais imediatamente conclusivos. São cenas desprovidas de causa e efeito, minimizadas, substituíveis na mente do espectador. Óbvio que não é bem assim. Sabe-se que nada é dispensável pelo olhar sacralizante do diretor, que, de antemão, já condena suas personagens, submetendo-as ao juízo final. Essa atitude de perenidade empresta ao filme A Grande Testemunha um caráter puramente universal. Na nossa grandeza humana, somos imperfeitos.

Balthazar, a grande testemunha, sai da adolescência de Marie e vai pertencer a uma padaria.

Habilmente, a trama é costurada em torno de algumas personagens, dando à narrativa um tom quase novelesco. Marie (Anne Wiazemsky) e Jacques (Walter Green) são amigos de infância. Veem o burro nascer nas terras do pai de Jacques. Os adolescentes juram amor eterno, mas logo as juras são esquecidas, quando o pai de Jacques deixa as terras aos cuidados do pai de Marie (Philippe Asselin) e vai embora, momento em que o filme avança cronologicamente no tempo.

Vemos agora o amor adolescente de Marie por Gérard (François Lafarge), um rapaz desocupado, mal-intencionado, que se aproveita de Marie, sem dar-lhe qualquer esperança de uma relação séria. Marie se transforma numa jovem desiludida, amargurada, submetendo-se aos desejos promíscuos de Gérard. Por outro lado, é obrigada a se debater contra a tirania moral dos pais. Encontra em Balthazar afetos passageiros, que suprem momentaneamente sua solidão. Mas é sabido que o burro está fadado a ir embora.

Balthazar, a grande testemunha, sai da adolescência de Marie e vai pertencer a uma padaria, onde trabalhará como veículo de carga na distribuição dos pães. Gérard, o funcionário-filho da padaria, oferece ao burro, com requintes de crueldade, toda sua índole de rapaz perverso.

A trama silenciosa de A Grande Testemunha vai criando pretextos para que o burro Balthazar apresente o mundo real ao espectador.

Balthazar ainda vai se apresentar como um bem-sucedido matemático em um número de circo. Usará misteriosamente a pata esquerda dianteira para contabilizar as somas e as multiplicações, levando o público ao delírio. Depois passa a vagar pelo mundo, conduzido pelas mãos de um bêbado, até voltar, por um tempo, aos cuidados de uma desolada e deprimida Marie, flertando com a possibilidade da morte. Assim vai Balthazar, criando pretextos para exibir o mundo real ao espectador.

Um fato pitoresco, que vale mencionar — e que tem sua funcionalidade no desenvolvimento da trama de A Grande Testemunha — é a transformação social revelada no número cada vez maior de automóveis que circulam pelas ruas da cidade. Veremos o burro se embrenhando por entre os carros que trafegam alheios à sua presença. A cidade já não é mais o seu habitat. Não o acolhe. É um corpo estranho. Presenciamos uma das cenas em que o bêbado estaciona o burro entre vários carros, ocupando uma das vagas, ressaltando o caráter obsoleto desse meio de transporte. O pai de Marie percebe bem a situação, ao definir como ridículo o fato de Marie ainda querer possuir um burro.

A Grande Testemunha é um primor de obra cinematográfica, uma ode ao desânimo de viver.

Para finalizar, ressaltamos o uso que Bresson faz da câmera, como se fosse um olho mágico que só pode enxergar as partes, jamais o todo. O diretor prefere manipular a câmera para aquilo que lhe interessa revelar. É ela que passeia rente ao chão, como se bisbilhotasse o que acontece no submundo. Os pés que caminham sobre restos de madeira; a mão que avilta o colo prestes a ser estuprado; o burro sendo maltratado ao som externo de relinchos de dor; a mão que segura o copo esvaziado várias vezes, em um único trago. O espectador é convidado a imaginar a que pessoas pertencem os gestos e o que eles revelam dessas pessoas que se apresentam fora do enquadramento da câmera.

Em suma. A Grande Testemunha é um primor de obra cinematográfica, uma ode ao desânimo de viver, um ultimato para os que ainda sonham em ser feliz, um silenciar do sentimento de impotência, um atestado de violência existencial — enfim, o filme escancara a existência perdida de seres humanos que estão em vida apenas para esperar a morte. E assim é o burro, numa comparação funesta. Nasce, vive e morre, sem ter conhecimento do que significou para ele pertencer, durante um certo tempo, a este mundo.

 

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