Roberto Gerin

Artigo Até tu, Biblioteca Nacional, por Roberto Gerin

ATÉ TU, BIBLIOTECA NACIONAL!

Diante de tantas lambanças ideológicas a que o país tem se submetido nos últimos tempos, agora mais esse comportamento disfuncional da Biblioteca Nacional, na sua decisão constrangedora de condecorar anticelebridades do livro. A atitude da Biblioteca apenas vem confirmar os tempos estranhos em que vivemos. Em uma ficção — já que estamos falando de livros —, esse acontecimento não caberia em qualquer enredo. Soaria falso, forçado, inverossímil. O que deu na cabeça dessa gente?

A Biblioteca Nacional demonstrou sua capacidade cínica de desfigurar nossa verdadeira cultura.

O Brasil perdeu-se em si mesmo. Suas lógicas naturais, baseadas no bom senso e nas experiências da boa convivência cidadã, se perderam na loucura de um governo que resolveu desmontar a estrutura social, ambiental e cultural construídas ao longo de décadas. O evidente desprezo pelo país constituído transforma-se em pátrio vilipêndio. Não que sejamos um país tão civilizado. Se fôssemos, teríamos barreiras morais mais consistentes para combater tamanha sordidez, como a perpetrada pela Biblioteca Nacional, que alçou Daniel Silveira, o mesmo que quebrou a placa de Marielle, à condição de arauto da literatura e do livro. A Biblioteca Nacional demonstrou sua capacidade cínica de desfigurar nossa verdadeira cultura.

Arte e política não podem se misturar.

Como não poderia deixar de ser, houve muitas reações de intelectuais, alguns agraciados com a mesma condecoração, e que, envergonhados, se recusaram a aceitar a deferência. Nesses tempos de obscuridade, temos que fazer um exercício extra para preservar nossas biografias. Podemos incorrer na fraqueza dos louros, e é com isto que contam aqueles que armam o aliciante palco do absurdo. Nas fileiras pseudointelectuais, o que não faltam são as trombetas da vaidade.

A Biblioteca Nacional, parece, candidatou-se a fazer parte dos anais dos disparates, envergonhando a história da cultura brasileira. O que prova mais uma vez que arte e política não podem se misturar, porque a primeira sempre será vítima da segunda, postando-se em atitude de servil humilhação. A arte como uso político é o veneno que não precisávamos tomar.

Até tu, Biblioteca Nacional!

Não se trata de impedir que membros do atual governo sejam contemplados. Alma heroica existe em qualquer fileira. O que se discute aqui é o incompreensível despropósito de condecorar armas e não livros.

Enfim. É impensável o que estamos presenciando. Daniel Silveira (e outros) sendo condecorado como um prócer da literatura e da cultura brasileiras. Diante de tamanho cinismo, só nos resta declarar, trazendo o longínquo Shakespeare para o salão da Biblioteca Nacional: há algo de podre nesse vergonhoso reino do Brasil! E indo agora para os salões do senado romano, exclamemos todos: até tu, Biblioteca Nacional!

 

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