Roberto Gerin

Resenha de Dersu Uzala, de Roberto Gerin

O HOMEM ORIGINAL

Ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1976, o poético filme DERSU UZALA (145’), direção de Akira Kurosawa, Rússia/Japão (1975), marca o ressurgimento do diretor japonês, após amargar o fracasso de bilheteria de Dodesukaden, seu primeiro filme colorido. Para as produtoras, o sucesso está sempre condicionado aos resultados financeiros. Com o fracasso, as torneiras de investimentos para novos projetos se fecharam para Kurosawa. Este fato o levaria à depressão e à surpreendente tentativa de suicídio, em 1971. Em 1973 é convidado por produtores russos da Mosfilm para filmar “alguma coisa” na Rússia. Kurosawa não teve dúvidas em aceitar. Tinha já um projeto, Dersu Uzala, baseado em fatos reais ocorridos justamente em solo russo. Encontro perfeito, sucesso garantido. Que alçaria Kurosawa novamente aos píncaros da fama, merecidamente o seu lugar.

O filme é baseado nas memórias do explorador e militar russo Vladimir Arsenyev, que comandou várias expedições no início do século XX, com o objetivo de fazer levantamentos topográficos na Sibéria, no longínquo oeste russo. Numa dessas expedições, o capitão e sua pequena tropa encontram o caçador Dersu Uzala, que logo aceita o convite para ser o guia da expedição. E assim nasce a bela história de amizade entre o civilizado capitão Vladimir Arsenyev, representado por Yuri Solomin, e o primitivo ser que habita as selvas, Dersu Uzala, com atuação fenomenal de Maksim Munzuk.

Dersu Uzala surge como o homem original.

A primeira cena do filme mostra o capitão Arsenyev muitos anos depois dos fatos que serão narrados, quando ele busca nos arredores da cidade, em meio a novos empreendimentos imobiliários, o túmulo do seu amigo Dersu Uzala. Portanto, sem medo de revelar o final, o filme já indica o desfecho da trama. O protagonista que dá nome ao título do filme (e do livro) não morreria nas selvas, seu habitat natural. Morreria na cidade, o que faz aguçar a curiosidade do espectador.

O roteiro se estrutura numa sequência episódica de cenas que vão relatando as dificuldades de se movimentar pela floresta densa e inóspita. São as constantes ameaças de animais ferozes, dificuldades de acomodações, sempre improvisadas, armadilhas colocadas por caçadores inescrupulosos, as fortes chuvas que transformam a selva em um ambiente hostil e, lá na frente, o ameaçador inverno. E permeando todas essas sequências em cenários reais, Kurosawa nos presenteia com belíssimas tomadas panorâmicas, das quais faz uso para enaltecer a silenciosa exuberância daquele mundo distante e desconhecido.  Neste contexto, a intimidade de Dersu Uzala com a natureza e seus mistérios vem facilitar o trabalho da equipe.

Mas o que interessa à câmera é focar na relação de respeito e admiração do capitão Arsenyev por aquela figura ímpar, movida por uma sabedoria ingênua, mas de profunda expressividade humana. Dersu Uzala se despe de todas as convenções sociais que fazem do homem civilizado uma caricatura do que ele outrora fora. Dersu Uzala surge como o homem original. O ser puro que se faz de movimentos primitivos, que age espontaneamente e fala apenas o que precisa ser ouvido. Não há como não se encantar por este visitante que se apresenta como o espelho que reflete uma outra imagem de nós mesmos. É a consciência de estarmos diante do ser que não mais somos que arrebata o capitão Vladimir Arsenyev. Ele, e nós.

Há também a cena reveladora do magnânimo altruísmo de Dersu Uzala.

Uma das cenas mais impactantes do filme é quando Dersu Uzala e o capitão se afastam do resto da tropa para fazerem uma determinada pesquisa topográfica num local aberto, uma imensa e assustadora planície. O inverno é rigoroso e a tempestade de vento e chuva não tarda a chegar. O capitão, diante da monstruosa força destrutiva da natureza, é tomado pelo desânimo e, sem reagir, se entrega à morte. Dersu Uzala não se intimida. Sozinho, recolhe a vegetação rala e, com o auxílio do tripé, improvisa a cabana salvadora. Esta sequência de cenas faz alusão ao velho embate entre o homem que precisa sobreviver e a natureza que o ameaça com suas fúrias imprevisíveis.

Há outras cenas tocantes que podíamos elencar como forma de venerar esta personagem saída da nossa origem perdida. Há a cena em que Dersu Uzala narra para o capitão o roubo do dinheiro. Ele havia deixado todo o seu ganho com a venda de peles aos cuidados de um comerciante. E Dersu Uzala não entende por que o comerciante sumira com suas economias, após tê-lo embebedado.

Há também a cena reveladora de seu magnânimo altruísmo. Após pernoitarem numa velha cabana, e antes de se retirarem, Dersu Uzala faz questão de restaurar o telhado avariado assim como pede ao capitão para deixar no seu interior mantimentos não perecíveis para servir de alimento para outras pessoas que por ali com certeza passarão. Que recado podemos tirar dessa atitude? Que vá além do simples encanto?

O enfraquecimento da visão é o anúncio da chegada da velhice.

Em uma segunda expedição, anos depois, quando o capitão retorna aos mesmos locais para finalizar seus estudos, vem-lhe à lembrança a figura de Dersu Uzala e, por conseguinte, o desejo de reencontrá-lo na floresta. E ficou claro que este desejo era mútuo, tamanha a esfuziante alegria de Dersu Uzala ao ver seu velho amigo “capitã”. É nesta segunda parte que o filme traz uma outra temática: o envelhecimento.

O roteiro faz uso de uma alegoria recorrente na selva para introduzir a decadência física da personagem. Há a crença de que não se pode matar a onça, porque, se assim o fizer, ela voltará para se vingar. E Dersu Uzala, para proteger seu amigo capitã, é obrigado a matá-la. Mas terá ele mesmo acertado a onça? Ele tem certeza que sim. A partir deste momento, Dersu Uzala se transforma em outra pessoa. Já não mais existirá o homem espontâneo e totalmente conectado à floresta. Veremos um ser ranzinza e assustado, porque percebe as mudanças físicas sobre as quais não tem qualquer controle. O enfraquecimento da visão, elemento essencial para as atividades da caça, é o anúncio da chegada da velhice.

Estabelece-se assim uma outra realidade, cruel e definitiva. Sem a visão, não há mais como conviver em harmonia com a floresta. Que passa a se tornar perigosa e incerta. Portanto, será preciso se afastar dela. É daqui que nasce a ideia do capitão Arsenyev de levar Dersu Uzala consigo, para morar em sua casa, com sua esposa e filho. Ao assim decidir, com a anuência do inseguro Dersu Uzala, prepara-se o triste desfecho do filme.

Não interessa onde e como vivemos, nosso ser original sempre existirá em nós.

Em suma. Dersu Uzala soa como um divisor de águas. Sabemos que o século XX será um século de saltos tecnológicos e científicos (também comportamentais) incomparáveis. Dersu Urzala, neste sentido, simboliza um tipo de vida humana que teria ficado definitivamente para trás. Esta visão não é pessimista, e nem significa que embarcamos em um modelo de vida pior. Não. Apenas que passamos a viver em outra era, com outros ritmos e necessidades.

Quanto ao filme Dersu Uzala, ele merece ser cultuado por muitas razões, algumas delas intrínsecas à natureza do cinema transformado em obra-prima. O que mais importa é que o homem Dersu Uzala encarna aquilo que sonhamos de nós mesmos. E aqui está a mensagem do filme. Não interessa onde e como vivemos, nosso ser original sempre existirá em nós. Mesmo que não transpareça em nossas atitudes diárias, é ele que nos habita. Não é à toa que — mesmo que não nos demos conta — estamos sempre querendo retornar à selva.

 

Clique aqui para conhecer O VOO DA PIPA, uma obra de Roberto Gerin.

 

Deixe seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *