Roberto Gerin

Resenha O Quinze, por Roberto Gerin

UMA ODE À SENSIBILIDADE SOCIAL

A literatura das secas, relativamente rica em nossa história literária, impingiu na memória coletiva dos brasileiros os sofrimentos dos nordestinos nas suas repetidas labutas para suportar longas ausências de chuvas. Fazem parte do nosso imaginário as carcaças do gado semeando a desolação na paisagem árida. E os retirantes percorrendo o chão trincado pela seca, sob um sol inclemente e silencioso. Dores registradas em relatos pungentes. Dor nordestina que parece não ter fim.

Nesse quadro de realidade da seca transposta para a literatura, chama a atenção, em meio a tantos clássicos, a singela obra da então jovem de dezenove anos Rachel de Queiroz. Obra portentosa para tão pouca experiência. Mas compensada pelo talento e pelos íntimos contatos com esta realidade que se fizeram no dia a dia de sua vida de nordestina abastada, moradora que era da fazenda da família, em Quixadá, cidade enfiada na geografia árida do nordeste cearense. Filha de pai às voltas com a lide da justiça togada e com o cultivo do solo, e de mãe que priorizava a cultura, em especial os livros — foi neste ambiente propício que sua precoce literatura floresceu. E nasceu pronta, destacada, já fulminando a pior das realidades: os sofrimentos gerados pela seca.

Conceição, incapaz de agir, ajuda a perpetuar os sofrimentos alheios.

A referência do título do livro, O Quinze, nos remete à grande seca de 1915, que assolou o Nordeste de ponta a ponta, com seus espasmos de fome que iam expulsando de seu ventre os nordestinos desesperados. E há algo nesta literatura que vale ressaltar. Talvez pela pouca experiência de vida da jovem autora, ainda imune a certos arroubos ideológicos, ela consegue, com sua força literária dosada na linguagem típica do nordestino, trazer a seca a seu ponto exato. Um fenômeno climático inclemente, de uma lucidez maldosa, cujas consequências vão além da simples e insuportável temperatura. A seca, acima de tudo, constrói uma realidade interior para cada uma de suas vítimas. Seja na itinerância de Chico Bento e Berdolina, seja na resiliente insistência de Alfredo, seja na angústia contemplativa de Conceição, seja no aristocrático conformismo de sua avó, Mãe Nácia. É cada um com a sua função emocional no tabuleiro social da seca.

A simbologia narrativa encontrada por Rachel de Queiroz se fixa nas questões pessoais do amor, movimentos de alma que pairam sobre qualquer situação, seja em tempos de chuva, seja em tempos de seca. É na impossibilidade de se realizar plenamente o amor, diga-se, casamento e filhos, que Conceição vai tecendo as incertezas de uma vida presa às inconclusões de quem vive uma realidade de impossibilidades. Afinal, a injusta estrutura socioeconômica do Nordeste, dedilhada em fantasias de domínio sociopolítico, caracterizado por uma voraz oligarquia que insiste em comandar o destino de milhões de nordestinos à mercê de sonhos inalcançáveis, traduz-se nas entrelinhas deste romance, O Quinze. E Conceição parece se perder em meio a essa perversa estrutura, sem saber para onde ir. Sem se posicionar perante a vida e seu futuro, resta-lhe esperar por um mundo (o amante) que não se dobrará a seus pés. Portanto, incapaz de agir, ajuda a perpetuar os sofrimentos alheios.

Dou as migalhas esperando que você não queira comer na minha mesa.

É espantoso ver uma menina de dezenove anos expressar tamanha lucidez histórica, radiografada por suas personagens, as quais, parece-nos, não são totalmente do conhecimento íntimo da escritora. Íntimo no sentido de deixar-se imergir em num ambiente histórico profundo, enraizado nos preconceitos, nos abusos trabalhistas, na inclemência da terra e na busca desesperada de seus habitantes pela mínima sobrevivência. O nordeste recontado neste romance escapole do próprio romance para adquirir vida própria. A despeito da autora. Que tem o talento, mas que ainda não tem a compreensão racional do que está narrando. E nem precisa. A arte se encarrega de denunciar.

Rachel de Queiroz faz a voz de Mãe Nácia desenhar as contradições sociais a partir de dois movimentos emocionais. A defesa dos seus interesses econômicos contrapostos à compaixão pelas vítimas desses interesses. Em outras palavras. Pra eu continuar a ser rico preciso te explorar. Mas nem por isso minha alma deixa de se compadecer da sua triste condição. Dou as migalhas esperando que você não queira comer na minha mesa. Esta análise, aparentemente simplista, retrata a dinâmica do domínio baseado na falsa sensibilidade pela desventura do outro. Esta sensibilidade vai até o limite de não perturbar a ordem social que é favorável. A seca não muda a sociedade, apenas a escancara. Portanto, a seca é uma visita indesejável também para a Mãe Nácia.

E é certo que, após a leitura de O Quinze, o leitor fará suas próprias reflexões.

Enfim. Não é objetivo aprofundar a análise socio-literária do romance de Rachel de Queiroz. O objetivo é apenas tecer loas a esta magnífica obra, ainda tão viva nos dias de hoje, após quase cem anos de sua publicação. Foi um presente oferecido a um povo que segue seu destino imposto por forças externas, sobre as quais ele pouco tem controle. Mas sua história está registrada com os aplausos efusivos das palavras.

Portanto, fica o convite ao leitor para ler — ou reler — esta magnífica literatura das secas, O Quinze. Que, ao lado de tantos outros romances, como A Bagaceira, de José Américo, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, parece ter normalizado a fatalidade climática do nordestino. Mas não é culpa da sensibilidade e talento artístico de Rachel de Queiroz, nem de José Américo de Almeida, tampouco de Graciliano Ramos a insistência histórica em colocar o dedo na ferida da seca. Como se quiséssemos nos furtar à responsabilidade de admitir que nosso conforto sempre tem um custo pago pelo sofrimento alheio. Ler esse tipo de literatura exige de nós responsabilidade social. E é certo que, após a leitura, o leitor fará suas próprias reflexões. E esperamos que estas reflexões passem pela miserabilidade humana, isto é, a de que o homem, para rejeitar seu próprio sofrimento, acaba causando sofrimento nos outros, prendendo-se às grades de ouro de sua própria insensibilidade, que é a vida vista a partir tão somente de si, jamais do outro.

 

Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.

 

Deixe seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *