Roberto Gerin

Oharu - A vida de uma cortesã

A VIDA DE UMA MULHER

Kenji Mizoguchi tem como uma de suas temáticas recorrentes o papel da mulher no machista sistema patriarcal japonês. Os homens de Mizoguchi estão sempre à procura da satisfação dos seus desejos. Mas não são só os desejos libidinosos que importam. A demonstração de poder econômico tem um papel fundamental na estratificação social do machismo. Sim. É o macho confrontado com outro macho pela conquista da afeição e dos favores sexuais da mulher. Nesta arena não vale usar a arma do amor. E tampouco a da paixão. Apenas o dinheiro. São estas as batalhas, diríamos, “sociossexuais” que permeiam o cinema de Mizoguchi. E elas não ocorrem entre quatro paredes, tão ao gosto do cinema ocidental. Elas se dão nos bairros de prostituição, o cenário de sofrimento e humilhação de suas mulheres.

Às vezes parece-nos confusa a estratificação da prostituição na antiga sociedade japonesa. No entanto, é esta estratificação que coloca cada macho em seu devido lugar. Os mais poderosos vão usufruir dos favores de uma gueixa. Eles são os patronos, de quem as gueixas recebem proteção e a segurança de uma vida menos indigna. No círculo infernal inferior está a cortesã, a mulher refinada que recebe dinheiro para as satisfações sexuais de senhores de classe respeitável. E, por fim, a prostituta que tenta ganhar dinheiro com o sexo tirado das ruas. São os jovens e os economicamente desenganados que as procuram. Vivendo de migalhas, estas mulheres se encontram a um passo do último círculo: a mendicância.

O objetivo de Oharu é sempre o mesmo — manter-se íntegra e lúcida.

Kenji Mizoguchi apresenta esta trajetória de decadência feminina em sua soberba Trilogia das Gueixas, uma fervorosa denúncia contra a prostituição na sociedade patriarcal japonesa. Ele começa com Os Músicos de Gion (1953), em que apresenta a difícil iniciação no complexo mundo das gueixas. As gueixas são usadas por seus patronos não só para satisfazerem seus desejos e vaidades masculinas, mas também serão oferecidas aos parceiros econômicos como moeda nas grandes negociações que envolvem contratos milionários. No segundo filme da trilogia, A Mulher Infame (1954), vemos um bordel sendo administrado pela mãe, a qual é questionada pela filha, que se recusa a herdar o negócio sujo. Aqui são as cortesãs que recebem os clientes e se endividam por antecipação. O corpo é usado como fonte de sobrevivência, não dando à alma o direito de se revoltar. E por fim, na camada mais baixa da prostituição, estão as mulheres que assumem socialmente sua condição de prostituta, buscando nas ruas, a céu aberto, durante o dia, seu ganha-pão por meio do sexo barato. Toda esta humilhação é retratada no belíssimo A Rua da Vergonha (1956), o último filme de Kenji Mizoguchi, que morreria de leucemia naquele mesmo ano, aos cinquenta e oito anos.

Mas há o filme que antecede a Trilogia das Gueixas. E que, por coincidência, condensa em sua trama as três camadas de prostituição abordadas acima, gueixa, cortesã e prostituta. Estamos falando do maravilhoso OHARU, A VIDA DE UMA CORTESÃ, de 1952. Kenji Mizoguchi atinge o teto de excelência artística ao mapear a decadente trajetória de uma mulher de meia-idade que, outrora dama de companhia nos salões imperiais, se rebaixa à condição de esmoler. É talvez o grande grito de denúncia feito por Mizoguchi contra o tratamento aviltante dispensado às mulheres japonesas. Mesmo que esta trama se passe por volta da década de 1680, não há como não avançar trezentos anos e trazer toda a problemática feminina para os dias de hoje. Mudaram-se os formatos de dominação e objetificação da mulher, mas não o conteúdo, que continua o mesmo: aviltante.

Esse poder que emana da mulher disposta a enfrentar o seu destino traz o indestrutível empoderamento que se resume na certeza de que a fortaleza interior jamais será destruída pelos invasores.

Afetado na infância pela venda de sua irmã mais velha para ser gueixa, Mizoguchi despeja neste filme todos os seus demônios gerados nas dores deste episódio familiar. Seu amor por sua irmã Suju é indisfarçável, e fica a impressão de que sua filmografia foi construída para reabilitar a história da irmã. Foi a forma que encontrou para refazer a própria história familiar. Quanto mais dedicava ódio ao pai, mais refinava a mulher nas telas de seus filmes. Oharu é a consagração do feminino aviltado por todos, mas que não se deixa, em momento algum, se aviltar por si própria. O objetivo de Oharu é sempre o mesmo — manter-se íntegra e lúcida.

Jovem bonita e apaixonante, Oharu é enviada à corte de Kioto, onde servirá como dama de companhia. Mas, apesar da liberdade, está submetida às rígidas regras palacianas. Até o momento em que ela vai transgredir uma destas regras: amar um homem de camada social inferior. Banida da corte, tomando conhecimento da condenação e morte de seu grande amor, Oharu não deixa de lançar seus gritos na tela em preto e branco. “Por que duas pessoas não podem se amar?!”. E pior. Oharu se submete ao testamento de Katsunosuke, quando este, antes de ser decapitado, manda dizer a Oharu que ela pode se casar com outro homem, mas com uma condição. Que se case por amor.

Na sequência, vem outro episódio que oferece mais um golpe para a mulher Oharu. Ela é novamente vendida pelo pai para ser concubina do Lorde Matsudaira, em Edo. Diferente do anterior, este episódio vem repleto de triste comédia. A comédia das exigências específicas do Lorde na busca de uma concubina perfeita. Vamos a alguns trechos para que o leitor tenha a dimensão hilária da descrição do “objeto” chamado mulher.

O pai, sem ouvir os apelos da filha, a vende para o Lorde.

“Ela tem que ter entre 15 e 18 anos, seu rosto deve ser arredondado, como está na moda. Seus olhos devem ser arredondados também. Sobrancelhas grossas, com espaço entre os olhos. Uma boca pequena, com dentes brancos perfeitos. Ouvidos longos, com contornos estreitos. E lóbulos separados e translúcidos. Cabelos naturais e sem falhas. Um pescoço longo, sem pelos. Dedos longos e finos, com unhas diáfanas. Pés com menos de 20 cm, com formas suaves. Ela deve ter um tronco cumprido e gracioso. Uma cintura firme, mas não musculosa, nádegas rechonchudas… Uma conduta agradável… Elegância em qualquer traje. Ser de origem nobre, e sem qualquer verruga no corpo.”

Carregando as exigências acima, o enviado do Lorde vai ao “mercado” de mulheres em busca do seu produto perfeito. Ser concubina de um Lorde é o sonho dessas mulheres, cujo desejo real é o de ajudar a família a sair da miséria. Mais uma vez é reforçado o papel decorativo da mulher, que é feita para o entretenimento, com o objetivo de servir às fantasias dos homens. Oharu é o contraponto desta lógica perversa, posto que se reserva o direito de amar. Oharu é a escolhida. Mas se nega a aceitar o papel que exigem dela: ser concubina tão somente para dar à luz o herdeiro do clã. “Me deitar com um estranho só para me engravidar?” — esse é o grito silencioso. E se lembra do testamento de Katsunosuke. O de só se casar por amor. Katsunosuke jamais aprovaria o acordo, mas Oharu, mais uma vez, não tem escolha. O pai, sem ouvir os apelos da filha, a vende para o Lorde.

Em Oharu – A vida de uma Cortesã, Mizoguchi alcança uma amplitude humana do feminino que dificilmente se verá em seus outros filmes sobre o mesmo assunto.

Oharu, humilhada ao chegar ao palácio como concubina, se encontra como mulher ao dar à luz o herdeiro. O filho a completa. No entanto, não terá direito a cuidar dele. E o Lorde, ao se apaixonar por Oharu, contraria os códigos do clã, que a expulsa do palácio. Mais uma vez o amor a coloca em situação de penúria. O pai, mesquinho e endividado (novamente a história familiar de Mizoguchi), vende a filha para Shimabara, um prostíbulo nos arredores de Kioto. E a saga desta mulher continuará em direção à decadência. De prostituta passa a mulher casada por amor, cujo marido logo é assassinado por um ladrão. Não lhe resta outro caminho, senão percorrer as ruas. Primeiro oferece seu corpo decadente que é rejeitado pelos homens. Por último, carregando um pote, passa a bater de porta em porta, pedindo um pouco de comida.

Vale reproduzir uma fala do dono do prostíbulo de Shimabara, quando Oharu se recusa a se submeter à mesquinhez do dinheiro como fonte de degradação moral. Diz ele a Oharu: “Você foi comprada. Você é igual a um peixe numa tábua de cozinha. Podemos servi-la como bem desejarmos.”.

Em suma. Apesar das tantas obras primas que viriam se juntar ao repertório de Kenji Mizoguchi ao longo dos anos seguintes, entre elas o clássico O Intendente Sansho, não podemos negar que em Oharu – A vida de uma Cortesã Mizoguchi alcança uma amplitude humana do feminino que dificilmente se verá em seus outros filmes sobre o mesmo assunto. Esse poder que emana da mulher disposta a enfrentar o seu destino traz o indestrutível empoderamento que se resume na certeza de que a fortaleza interior jamais será destruída pelos invasores. E somando-se ao bem alinhavado roteiro, à bela direção, à fotografia e ao cenário, temos, na atuação magnífica e empoderadora da grande atriz Kynuyo Tanaka, a finalização perfeita do que é ser mulher em um mundo hostil.

 

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