Os Demônios
A GESTAÇÃO DOS DEMÔNIOS
Fiódor Dostoiévski, quando se propõe a radiografar pedaços da realidade política e social da sua velha Rússia, não brinca em serviço. Não economiza tinta. Muito menos se intimida. Amparado por sua genialidade de escritor e munido de ferramentas artístico-literárias inconfundíveis, ele simplesmente escarafuncha as mentes humanas inseridas numa estrutura de ações atreladas ao destino da nação russa. Portanto, para entender o que está acontecendo a sua volta, Dostoiévski usa a tática infalível de entender os agentes desta realidade. O que lhe interessa, em longos e belos parágrafos, é deixar suas personagens falarem, e falarem, e opinarem, e reclamarem, para tirar da verborragia os deslizes psicológicos de que precisa para traçar o painel social do seu romance. Neste portentoso OS DEMÔNIOS, 687 p., Editora 34, o escritor russo talvez consiga imprimir uma de suas melhores marcas, que é o domínio da escrita aliada ao total e sensível conhecimento das temáticas que aborda.
Fiódor Dostoiévski sempre esteve intimamente ligado às efervescentes questões políticas que agitaram a Rússia, principalmente na segunda metade do século XIX, e que levariam, no começo do século XX, à Guerra Civil Russa, cujos principais efeitos foram enterrar a dinastia Romanov e instalar o sistema político socialista. Em Os Demônios, Dostoiévski nos conduz para a realidade futura de uma Rússia em transição social e econômica, que já não mais aceita empunhar as enferrujadas armaduras monárquicas.
O crime repercutiu na impressa, causando comoção social em toda a Rússia.
Como não podia deixar de ser, o autor parte de fatos (sempre os fatos movendo a literatura de Dostoiévski) para compor esta obra monumental. Em meio a tantas organizações políticas que rastejam pelos porões de uma Rússia em frangalhos, aparecem os oportunistas, que são aqueles que querem agitar sem saber exatamente por que e pelo que lutam. São estes personagens da vida política russa que Dostoiévski vai convidar para fazer parte de seu romance Os Demônios.
Devo acrescentar que Dostoiévski era profundo conhecedor desses movimentos políticos que fermentavam suas ideias em bares clandestinos e agitavam, com seus panfletos, as ruas dos principais centros russos, afinal, o escritor fizera parte de um desses movimentos, que quase o levara a ser fuzilado. Apesar da militância, Dostoiévski foi lúcido o suficiente para separar o joio do trigo. E foi com esta postura ética que ele se sentou para escrever seu maravilhoso romance Os Demônios.
Um estudante que fazia parte de uma destas organizações políticas clandestinas — Justiça Sumária do Povo —, por não mais concordar com seus rumos políticos, resolveu se afastar da entidade. Esta atitude de rebeldia custou-lhe a vida. Foi assassinado pelos demais membros. Era o dia 21 de novembro de 1869. O crime repercutiu na impressa, causando comoção social em toda a Rússia, e na Europa. Dostoiévski acompanhou atentamente o julgamento deste crime político — aliás, o primeiro a ser ampla e abertamente debatido pela imprensa russa —, criando nele o interesse em escrever um romance em torno do fato. Abandonou os projetos em andamento e se dedicou a este feliz trabalho que se transformaria em uma de suas principais obras-primas.
Ler é um ato solitário, de muita paciência, mas que possibilita inesquecíveis mergulhos em outras realidades geográficas e culturais.
A trama de Os Demônios se desenvolve em dois cenários principais. No primeiro, vemos os grandes salões da aristocracia burocrática russa, com suas personagens de compleições psicossociais decadentes, representantes fiéis do ocaso da aristocracia russa pelas mãos cada vez mais inseguras dos Romanov. Por outro lado, vemos os cubículos escuros e lúgubres nos arredores da cidade, onde se trama, de forma confusa, o futuro de uma nova Rússia. A literatura de Dostoiévski transita entre estes dois mundos que se confundem, camadas sociais que se interpenetram, se traem, se bajulam, se entrelaçam em intenções nem sempre honestas. É este fermento psicossociológico putrificado que vai gestar atitudes de bravatas ideológicas e que desembocará em um simples crime. Só que este crime aparentemente episódico vai aos poucos adquirindo uma inesperada dimensão política. O crime se torna necessário para que a clandestinidade não seja desmascarada.
Falar da literatura de Dostoiévski é um desafio que este resenhista se recusa a encarar. Não por covardia intelectual, senão que a estatura artística deste grande escritor não cabe em proposta de escrita tão passageira. Cabe-nos apenas chamar a atenção dos leitores para mais esta obra merecedora de ser lida e cultuada. E que as 687 páginas desta edição não assustem. Afinal, ler é um ato solitário, de muita paciência, mas que possibilita inesquecíveis mergulhos em outras realidades geográficas e culturais. Dostoiévski esgrime as palavras com total consciência de artista, usando-as não só para compor mais uma de suas literaturas, mas também para espantar os demônios que habitam as entranhas e precisam ser exorcizados. Nada melhor do que a eficiente beleza do estilo feroz e genial para trazer à luz mais este pequeno pedaço de humanidade. É só o que temos a fazer. Sugerir mais esta inevitável leitura.
Ao permitirmos que vilipendiem os valores que compõem nosso sistema de vida, estaremos abrindo as portas para os demônios.
Em suma. Ao criar o tenebroso personagem Vierkhoviénski e seus assustados comparsas, hábeis em cavar túneis imorais, Dostoivéski nos apresenta possibilidades políticas desastrosas, passíveis de serem produzidas por sociedades que se desconectam dos valores humanos, perenes e inatacáveis. Portanto, ao permitirmos que vilipendiem os valores que compõem nosso sistema de vida, estaremos abrindo as portas para os demônios. E será sempre assim. A cada tentativa desastrada de nos livrarmos dos velhos demônios, acabamos criando outros, de mesma feição e capacidade de destruição. Diante desta dança macabra pelo poder, nunca nos faltaram mentes luminosas para nos alertar. Eis uma boa razão para lermos Os Demônios.
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