Úrsula

NINGUÉM PODE ESCRAVIZAR NOSSA MENTE
Apesar de ser um romance saído do ventre do romantismo, quando se trata de falar da escravidão e do sistema social que dá razão a essa barbárie, a obra máxima de Maria Firmina dos Reis, ÚRSULA, 279 pg., Ed. Companhia das Letras, deixa momentaneamente as paixões de lado para expor ao leitor, sem retoques, a realidade de dores do escravizado. Esse hábil jogo de revelar verdades históricas inseridas na concepção romanesca — forma versus conteúdo — alça o romance de Maria Firmina ao status de literatura a serviço da arte e da política. Não tem como dissociar Úrsula de seu tempo histórico. Não à toa, tornou-se uma obra-prima da nossa literatura romântica.
A despeito do inquestionável mérito literário de Úrsula, causa estranhamento o silêncio que envolveu a obra ao longo de quase todo o século XX. Se percorrermos resenhas e discussões literárias, inclusive no âmbito dos bancos escolares, vamos perceber raros momentos em que esse romance, basilar da nossa literatura, foi objeto de apreço e análise. Só nos últimos anos o silêncio vem se quebrando. E o que vemos agora, como justa reparação, é a participação de Maria Firmina como homenageada na 20ª edição da FLIP – Feira Literária Internacional de Paraty.
Não há hoje, na proposta política de combate ao racismo, ignorar Úrsula.
A escravidão é uma temática espinhosa, que costumamos relegar para páginas menores da nossa história, evidenciando a falta de interesse em colocar fato tão vergonhoso diante dos holofotes. Em tempos atuais, em que o racismo é assunto de discussões sérias, em que a literatura de autoras e autores negros vem ganhando destaque nas mídias especializadas e nas estantes de leitores sedentos por conhecer a realidade social do preto, não há mais como ignorar Úrsula. Tornou-se imperativo festejar Maria Firmina dos Reis, atestando sua importância no surgimento dessa literatura voltada para discutir as questões cotidianas da gente preta.
E todo esse movimento começou lá trás, pelas mãos de Maria Firmina dos Reis, mulher negra e letrada (professora no interior do Maranhão), que insistiu em lutar pelo sonho de se transformar numa escritora publicada. Úrsula vem a lume em 1859, ainda no auge da escola romântica. Mas com um detalhe. Maria Firmina publica seu romance sob o pseudônimo de “Uma Maranhense”, para, só depois, em outras edições de outros escritos seus, assumir corajosamente seu nome de mulher e sua condição de escritora negra. Eis o grande feito: ela não só se torna a primeira mulher a publicar um romance no Brasil como revela ser, esta mulher, negra.
O momento mais pungente da narrativa é protagonizado por Túlio.
O enredo gira em torno do amor impossível entre Úrsula e Tancredo. O moçoilo bem-apessoado sofre um acidente de cavalo nas cercanias da fazenda onde Úrsula mora com sua mãe, Luiza B. Túlio, o escravo da fazenda, encontra Tancredo gravemente ferido. Leva-o para a casa de sua senhora, onde o enfermo recebe os cuidados de Úrsula. Como não poderia ser diferente, os dois jovens se apaixonam, com trocas de juras de amor eterno. O enlace é adiado tendo em vista compromissos inadiáveis de Tancredo. A ausência do amante possibilita à autora introduzir, primeiro, as questões da escravidão, e, depois, o vilão da trama.
Do romance Úrsula emerge uma outra África, a terra da liberdade.
A grande inovação de Maria Firmina foi dar voz própria aos negros que, apesar de coadjuvantes, têm a potência necessária para ecoar as dores geradas pela escravidão e provocar emoções genuínas no leitor. Reside aqui a alma essencial do romance, quando nos é dada a oportunidade de ouvir a voz da preta Susana. O momento mais pungente da narrativa é protagonizado por Túlio. Ao ser alforriado com o dinheiro presenteado por Tancredo, e decidido a abandonar a fazenda de Luiza B., Túlio vai se despedir de Susana. É a oportunidade que a autora se oferece para falar de tema tão caro a ela: a escravidão e suas dores.
Susana rememora seus dias livres de infância e adolescência vividos na sua mãe-África. Por meio dos relatos de Susana, a autora nos traz uma África diferente, exaltada como a terra da liberdade. É o lugar onde os negros, agora escravizados, eram felizes. Casada, mãe de filhos pequenos, é capturada e transportada para uma terra distante: a terra do sofrimento, a terra da escravidão. É a chaga que o Brasil, visto por meio de sua história oficial, sempre tentou esconder.
Úrsula simboliza a tragédia moral em que se transformou a escravidão.
O romance ganha fôlego dramático com a introdução do vilão, o agente de sofrimentos e tragédias. É o Comendador, irmão e vizinho de Luiza B. Em um encontro fortuito com a sobrinha Úrsula, o tio se apaixona por ela. É uma paixão incontrolável, que gera um amor egoísta e vingativo. O ódio que o Comendador nutre por sua irmã, Luiza B., por ter esta se casado com um rapaz de origem inferior, fora do círculo social da família, é transferido para Úrsula. A recusa incondicional de Úrsula em se casar com o Comendador, preservando seu amor por Tancredo, coloca em movimento o desfecho trágico previsível. É a partir da construção de conflitos familiares, exacerbados pelo triângulo amoroso — portanto, motivados por paixões soberbas —, que a obra de Maria Firmina vai se desenhar em direção à tragédia romântica.
Maria Firmina, munida de rigoroso estilo, sente-se à vontade para falar daquilo que lhe interessa e que lhe dói na pele. São os frutos doloridos de vivências de mulher negra. Sua capacidade de ir além de si a credenciou para tratar de assuntos de interesse social, trazendo o negro para a ribalta, ao lhe dar voz, sentimentos e memórias. É um jogo concomitante de amor e ódio, de escravidão e liberdade, e, acima de tudo, da consciência de que é nosso direito inalienável podermos usufruir do nosso corpo e da nossa alma. O corpo, na visão de Maria Firmina, foi aprisionado; a alma, jamais. Afinal, ninguém tem o poder de escravizar nossa mente.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.