A Bela Da Tarde
SERIAM AMOR E SEXO FACES DA MESMA MOEDA?
Todos nós sabemos que a vida se manifesta em infinitas possibilidades. No entanto, somos conduzidos a viver da forma que nos é determinada como a mais correta e a mais aceitável, tanto moral quanto socialmente. Conformamo-nos em sermos réplicas, mesmo que dentro de nós exista uma individualidade difícil de ser domada. Assusta-nos ter que lidar com os conflitos que nos habitam e nos atormentam, afinal, eles insistem em nos arrastar por caminhos diferentes. E, às vezes, perigosos. E aí se nos apresenta o velho dilema: ceder ou não ceder aos nossos verdadeiros desejos? O belíssimo filme A BELA DA TARDE (101’), de Luis Buñuel, França (1967), vem colocar essa questão para o espectador. E a coloca de uma forma soberba, sem reticências.
O filme A Bela da Tarde contrapõe o que é tido como normal a uma situação de ousadia, onde a vida idealizada passa a ter o gosto delicioso da transgressão. Só que sair do quadrado social é nos lançarmos numa zona de turbulência e riscos, cujo preço pode ser muito alto, tão alto que não vamos ter condições de pagar. A nossa bela da tarde que o diga.
A bela da tarde tornou-se prostituta vespertina de um sofisticado bordel clandestino.
Séverine, encarnada pela exuberante Catherine Deneuve, é mulher bela e ociosa, amparada por um casamento de sonhos, com um homem que lhe oferece a perfeição – mas uma perfeição tediosa, que não sacia! O maridão Pierre (Jean Sorel) é o príncipe insosso que Séverine gostaria de guardar num armário para usar só em ocasiões especiais. Mas o que fazer enquanto o príncipe estiver trancado no armário? Ora, o quiser! O que desejar. O que sonhar. Faça o certo ou o errado, mas faça!
Séverine partiu para uma solução radical – ou surreal, à la Buñuel. Arranjou um amante caliente? Nada disso. É pouco. A bela da tarde tornou-se prostituta vespertina de um sofisticado bordel clandestino (aliás, qual não é?). Isso mesmo. Duas vidas. A clandestina, glamourosa e arrebatadora, que vai injetar felicidade na outra, a oficial. Portanto, estabelece-se o equilíbrio exato entre esbofetear o rosto da perfeição (à tarde) e, logo mais à noite, beijá-lo calorosamente. Só que Séverine acaba entrando para o lado obscuro da vida. O lado que é dominado pelo sexo que traz em sua bagagem as obsessões e as carências humanas. É quando o destino chega e aponta as fragilidades. Numa fração de segundo, ele tira o sossego e o controle da prazerosa clandestinidade. E tudo, como diria o poeta, vira “merda”. Ou como sussurraria a vizinha fofoqueira: bem-feito!
Teria a bela da tarde apenas tido a ousadia de seguir o fluxo carnal dos seus mais recônditos desejos?
Será que devemos mesmo escarafunchar certos segredos que o filme não nos revela? Será que devemos tentar descobrir as razões que empurraram Séverine para dentro do bordel? É mesmo necessário discutir a personagem do ponto de vista da sua escolha? Ao levantar hipóteses, não estaríamos enquadrando? Julgando? Simplificando a obra-prima de Buñuel? Bem. Na dúvida, melhor reservarmos apenas um parágrafo para breves considerações.
Especulemos. Teria Séverine apenas tido a ousadia de seguir o fluxo carnal dos seus mais recônditos desejos? Teria o abuso na infância, possibilidade essa trazida por rápidos e incisivos flashbacks, a capacidade de acionar, a partir do ponto de vista do espectro da normalidade social, os ditos desvios de conduta da personagem? Ou seria a escolha apenas motivada por um casamento sexualmente entediante, à la Madame Bovary? Afinal, ambas têm como marido (entediante) um médico muito ocupado. E o ponto de contato entre as duas personagens se dá nos sonhos de Séverine, que a levam para o século XIX, em suntuosas carruagens ocupadas outrora pela afetiva e sexualmente inquieta Madame Bovary a caminho de sua Rouen… Stop!
Se são normais, não são deslizes, são apenas escolhas.
Em suma. A responsabilidade por captar os movimentos sutis da personagem que a encaminharam para um tipo de vida tida socialmente como condenável, mas da qual ela tirava prazeres reais, nada oníricos, é da espectadora e do espectador. E mesmo que Buñuel misture realidade com sonhos, com a intenção de confundir, não caiam na conversa desse hábil diretor. Pelo contrário. Mantenham os pés firmes na realidade e verão escancarada a finalidade social do casamento como uma instituição que já reserva uma coluna de débitos para contabilizar os “deslizes morais”. O que nos leva à escandalosa conclusão de termos que admitir que os tais deslizes fazem parte do jogo. Portanto, podem ser vistos como “normais”. Ora! Se são normais, não são deslizes, são apenas escolhas! Nesse caso, apesar da tragédia, Séverine teve o direito de fazer a sua. Mesmo que na escolha venha embutida a condenação.
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